sábado, 21 de agosto de 2021

Um poema, uma polémica e uma reflexão: a identidade importa na tradução? - Máxima - Dicionário

A 20 de janeiro de 2021, Amanda Gorman tornou-se a mais jovem poeta a ler um poema na tomada de posse presidencial. Depois do discurso de Joe Biden, o 46.º presidente dos Estados Unidos da América, Gorman subiu ao palco e conquistou o país e o mundo. A eloquência, a cadência das palavras, os gestos, as hesitações e a força da mensagem da jovem negra de 23 anos (na altura 22) fizeram com que o vídeo se propagasse nas redes sociais em minutos.

Esse mesmo poema deu origem a um livro. A Colina Que Subimos - Um poema inaugural, chegou a Portugal pela Editorial Presença, numa edição bilingue, com tradução de Carla Fernandes. O livro, para oferecer, ler e reler, celebra a promessa da América e reafirma o poder da poesia. Mas mesmo antes de este chegar a território nacional já se desenrolava uma discussão sobre a obra – ou melhor, sobre a sua tradução. Quem deve traduzir Amanda Gorman?

O debate instalou-se a propósito da tradução do poema nos Países Baixos. A editora sugeriu e Gorman consentiu que Marieke Lucas Rijneveld, nome literário respeitado e premiado, fosse responsável pela tradução da obra para neerlandês. No entanto, a escolha de uma pessoa branca levantou dúvidas e duras críticas nas redes sociais e em meios de comunicação social. Não era tanto uma questão de cor da pele, mas de identidade, alegavam. Marieke Lucas Rijneveld, que recebeu o International Booker Prize em 2020, e que se identifica como pessoa não-binária, não usando pronomes masculinos ou femininos, acabou por abandonar o projeto poucos dias depois. "Dediquei-me com felicidade a traduzir a obra de Amanda, sendo o maior desafio manter o seu poder, tom e estilo. Contudo, estou ciente de que estou numa posição em que posso senti-lo e fazê-lo, na qual muitos não estão. Continuo a desejar que as suas ideias cheguem ao maior número de leitores possível e com corações abertos", disse em comunicado.

Carla Fernandes, tradutora da obra em Portugal, considera "muito necessário" o debate em torno da tradução do poema de Gorman. "Achei muito interessante a reação da Marieke Lucas quando se deparou com a questão e [de] se ter retirado ela própria. Ou seja, ela percebeu a dimensão da questão sendo uma pessoa não binária, pertencendo a um grupo que também ele é marginalizado. Ou seja, conseguiu entender de alguma forma a dor dessas pessoas e pensou ‘não, está na altura de dar espaço, ou de contribuir que esse espaço se crie’. Às vezes esta questão de dar espaço é um bocado paternalista, mas está na altura de nós contribuirmos para que se crie um espaço mais diverso", diz.

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Aqui ao lado, em Espanha, o tema também fez correr tinta. O catalão Víctor Obiols revelou que foi afastado da tradução do poema de Amanda Gorman por não ter "perfil certo", isto depois de já ter sido contactado pela editora para a tarefa. Obiols é um homem branco, de 61 anos, tradutor de autores como William Shakespeare ou Oscar Wilde.

Em Portugal, uma das primeiras traduções de The Hill We Climb foi a de Raquel Lima, investigadora em Estudos Pós-Coloniais, poeta de spoken word, mulher negra e ativista, a convite da Casa Fernando Pessoa, no início de fevereiro. Segundo o jornal Público, Lima estava em março a trabalhar "na tradução da primeira colectânea de poemas de Amanda Gorman a publicar em Portugal, com uma chancela ainda mantida em segredo". No entanto, o poema traduzido viria a ser removido da página da Casa Fernando Pessoa, deixando no seu lugar esta nota: "Trabalhamos há muitos anos com tradução e divulgação de poesia e respeitamos os direitos de autor de todos os envolvidos, poetas-criadores e tradutores (também eles criadores). Compreendemos o enquadramento e lamentamos que não possam legalmente circular nos próximos anos várias traduções, várias leituras de um mesmo poema. Agradecemos o trabalho desenvolvido pela poeta Raquel Lima."

`A Colina que Subimos - Um Poema Inaugural´, de Amanda Gorman, Editorial Presença
`A Colina que Subimos - Um Poema Inaugural´, de Amanda Gorman, Editorial Presença Foto: D.R

Mais tarde, viria a saber-se, a chancela detentora dos direitos da obra de Gorman seria a Editorial Presença e a tradução estaria a cargo de Carla Fernandes, mulher negra, tradutora, jornalista e programadora cultural. Em entrevista à Máxima, via Zoom, explica como foi desafiada para traduzir a obra de Amanda Gorman: "Fui indicada pela Raquel Lima, que é uma poeta negra e de poetry slam, ela é que me indicou para a Presença (...) A Raquel fez das primeiras traduções, e isso é meio poético também. Estava a ouvir uma entrevista da Amanda Gorman e ela fez-me muito lembrar este processo com a Raquel Lima. Ela disse algo como ‘it’s not about breaking through doors, it’s about keeping them open’. Não se trata de entrar pela porta da frente, mas mantê-la aberta para que os outros passem. Ela dizer isto é uma forma de estar".

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"Porque sabemos que a nossa inação e inércia/ Serão a herança da próxima/ geração" dizem os versos de Amanda Gorman. E, com o debate instalado, não houve espaço para inação nem inércia no mundo literário. "O facto de a Presença ter pensado em nós também reflete um pouco desses resultados de se ter levantado essa questão. Muitas vezes estas coisas não se fazem porque não se falam destas questões. E isso é um dos resultados da dita polémica. Acho muito mais produtivo termos resultados como estes, em que as editoras vêm, tocam-se e dizem ‘espera aí, nós não estamos a observar este aspeto, quem são as pessoas que temos para traduzir, podemos diversificar ou não a nossa equipa, trazer outros olhares para dentro da nossa equipa?’ Acho que cutucar a besta é importante nesse sentido. Não é só uma discussão. Acho que a discussão não ficou por ali. Espero que a polémica se traduza em atos, que aconteça uma transformação, que não tenha sido em vão", diz Carla Fernandes sobre um debate que há muito exigia espaço. O que defende está espelhado na sua biografia no site da rádio AfroLis, de que faz parte: "Traduzir não é apenas substituir uma palavra por outra. As palavras em diferentes línguas acarretam a história e estórias que identificam diferentes culturas. A cor da pele funciona da mesma forma que as línguas".

Será preciso ter a mesma cor para traduzir alguém?

"Se formos considerar que foi a própria Amanda Gorman a escolher uma pessoa não binária, mas branca, para fazer a tradução... Ela se calhar não tinha pensado nessa questão naquele momento", começa por dizer a tradutora dos três livros da poeta estadunidense a publicar este ano em Portugal, "mas uma vez que essa questão foi levantada vale a pena pensar nela e no que isso quer dizer. Porque não ter aqui uma janela de oportunidade e fazer disto mais do que uma tradução? Isto é mais que uma tradução. Não nos podemos apegar à parte técnica da coisa. Será que uma pessoa branca consegue traduzir um texto de uma pessoa negra? Não nos podemos agarrar a isso. A experiência cultural não pode ser descurada". O que está, então, na génese da opinião dos que defendem que deveria ser uma mulher negra a traduzir este poema inaugural? "O facto de pertenceres a um grupo, e não estou a falar de uma nação, estou a falar de pessoas negras aqui, estou a falar de mulheres. O facto de pertenceres a esse grupo dá-te algum tipo de sensibilidade para determinadas temáticas. O facto de fazeres poesia ou poetry slam, toda a gente viu como ela disse os poemas, no poetry slam tu dizes os poemas com o corpo. Faz sentido que esses aspetos sejam considerados. Estamos a falar de culturas que são transportadas com o corpo e a história das pessoas", resume.

Carla Fernandes pertence à Associação AfroLis, uma associação cultural que tem como um dos seus objetivos a promoção da expressão cultural de afrodescendentes. Entre uma das iniciativas da associação esteve a publicação de poemas de jovens afrodescendentes. "Quando me comecei a aperceber que devia contribuir mais para a questão antirracista, para a história das pessoas negras e criar espaço para que elas se possam expressar, quando me aproximei desse momento quase só leio autores negros, ultimamente", admite. "São os autores com os quais eu me identifico. Porque se eu estou a ler um poema e o cabelo é loiro e está a voar ao vento eu não sei bem qual é a sensação, mas consigo imaginar. Então leio essencialmente autores negros porque tenho ali uma proximidade", explica.

Carla Fernandes, tradutora da obra `A Colinha que Subimos´ em Portugal.
Carla Fernandes, tradutora da obra `A Colinha que Subimos´ em Portugal. Foto: D.R

Além da proximidade, da identificação imediata, há outro elemento em cima da mesa onde o tema da tradução está em discussão: a cultura. "As pessoas negras têm acesso a alguns termos, alguns dados históricos, porque elas vivem isso, porque elas procuram isso, elas leem sobre isso. Mais facilmente conseguem chegar a alguns significados e ter curiosidade para saber mais. Eu, por exemplo, quando li o poema ouvia Maya Angelou. And still i rise. Eu conseguia ouvir a Maya Angelou. Então tive curiosidade para ver ‘será que ela está mesmo aqui?’ Estava. Essa sensibilidade cultural é importante quando pensamos numa tradução. Não se esgota aí, mas é importante ser considerada", acredita. "Não vamos tapar o sol com a peneira e dizer que neste caso será que o tradutor é bom ou não. Não vamos esgotar a conversa aí. Trata-se de uma oportunidade de trazer esta discussão à baila e para trazer outros olhares sobre a literatura", acrescenta.

Uma questão estrutural

Aquando da polémica, no início do ano, a jornalista Isabel Lucas falou com diversas personalidades do mundo literário para um extenso artigo no Público. Margarida Vale de Gato, poeta, tradutora e professora de tradução literária na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lamentava a falta de tradutores negros em Portugal. "Quando digo que não conheço nenhum tradutor literário negro, é estranho sobretudo para mim, que sou professora de tradução literária. Já tive alunos negros, não sei o que estão a fazer agora. Mas se calhar vou tentar acompanhar mais de perto e estar sensível a isto para equipar o maior número possível de pessoas diferentes a terem acesso à profissão", dizia.

"Há algumas áreas, principalmente o trabalho intelectual, em que as pessoas negras são menos presentes. Temos de falar do preconceito."

Para Carla Fernandes este é um exemplo de como a questão vai muito além da tradução e assume um caráter estrutural. "Eu acredito que existam poucos [tradutores negros]. Quando eu tirei o meu curso de tradução aqui em Lisboa eramos três na turma. Uma das minhas colegas, dessas pessoas negras, já não está a trabalhar em tradução, o outro trabalha de forma bem precária e eu trabalho in and out, mas tenho a sorte de ter trabalhado na Deutsche Welle, numa rádio internacional na Alemanha, e fiquei lá durante 6 anos e todos esses anos trabalhei em tradução, eram textos mais jornalísticos, mas também fazia radiodrama, escrevia e traduzi durante 4 anos", explica. Mas antes sequer de se falar da entrada no mercado profissional, há um preconceito, afirma Carla: "Há algumas áreas, principalmente o trabalho intelectual, em que as pessoas negras são menos presentes. Temos de falar do preconceito. Existe o preconceito de que a pessoa negra consegue fazer um trabalho braçal e mais facilmente encontramos pessoas negras aí, a outros níveis é difícil. É mesmo uma questão estrutural. (...). Ela [Margarida Vale de Gato] também se calhar deve ter pensado nos alunos que ela não teve, nos colegas professores universitários que ela não teve. Aí é que nós vemos que é um problema estrutural". Uma coisa parece evidente: não é uma questão da capacidade. "É de uma falta de honestidade enorme pronunciarmo-nos sobre situações deste género, em que em vários países do mundo temos uma dificuldade em encontrar pessoas negras que estejam em determinadas posições e decidir ou escolher dizer que isso é devido à incompetência desse grupo de pessoas espalhadas pelo mundo e não pensar em soluções para que isso mude. De que forma é que nos podemos intervir para que este quadro seja diferente?", insiste. Nas palavras de Gorman: "Vamos reconstruir, reconciliar e recuperar".

Porquê agora?

Está longe de ser a primeira vez que uma autora negra é traduzida por pessoas brancas. Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana autora de títulos como Todos Devemos Ser Feministas, já foi traduzida por homens caucasianos e este questionamento sobre a importância da identidade na tradução não se sucedeu – ou não a esta escala. "Acredito que tenha sido o zeitgeist", justifica Fernandes. "Porque estas questões têm sido faladas em diferentes nichos, a luta antirracista, os grupos literários de pessoas negras, fala se sobre estas questões. Mas foi mesmo o fervilhar, o zeitgeist, neste momento em que as questões raciais estão cada vez mais à flor da pele, depois do George Floyd, tivemos a invasão ao Capitólio, o Trump esta vida toda... Há aqui um momento em que temos de pegar na situação e dizer ‘não, agora nós vamos tomar a liderança e vamos fazer assim, é necessário’".

Amanda Gorman com o seu livro `A Colina que Subimos´.
Amanda Gorman com o seu livro `A Colina que Subimos´. Foto: @amandascgorman

Em Portugal, houve já pelo menos um caso em que a discussão sobre o papel da identidade na tradução veio à tona. Foi não há muito tempo, com a obra Memórias da Plantação, de Grada Kilomba, escritora e artista negra portuguesa radicada em Berlim. Foi um caso "interessante", descreve Carla Fernandes e, apesar de não ter existido "uma polémica enorme", foi o suficiente para agitar águas no meio literário e convidar à reflexão. O livro, originalmente escrito em inglês foi traduzido em Portugal por Nuno Quintas, um homem branco (no Brasil a tradução esteve a cargo de Jess Oliveira, uma mulher negra e queer). "A Grada ficou satisfeitíssima com a tradução, mas ela teve a necessidade de escrever a carta da autora na edição portuguesa. E porquê? Porque este livro foi escrito em inglês, e a língua inglesa trabalha muito com o género neutro, e tem palavras problemáticas historicamente", diz Carla, exemplificando: "O black nem é tão problemático, mas é problemático no momento da tradução. Se fores a ver nós aqui em Portugal não tivemos o processo da N-word, negro, people of colour. Há vários termos que nós não conseguimos traduzir da noite para o dia, e se conseguirmos vai haver gente a saltar em cima de nós e a dizer ‘Porque é que estás a dizer ‘mestiço’, porque é que estás a dizer ‘mulata’?’ E nós utilizamos essas palavras porque não temos outros recursos. Então esta discussão sobre os vários termos já esta a ser feita e a Grada Kilomba registou isto de alguma forma. Ela sentiu incómodo quando leu as palavras em português e teve a necessidade de se justificar e de retificar ou arranjar soluções para poder ter esses termos no livro. Arranjou uma solução que não é definitiva, mas já indicou que isto aqui tem de ser falado, tem de ser discutido".

Para a tradutora da obra de Amanda Gorman, cujo poema tantos caracteres fez render no espaço mediático, é mais uma prova de que "traduzir não é só pegar numa palavra e colocar outra", e remata: "Esta sensibilidade cultural existe neste caso específico de pessoas negras, mas também de pessoas indianas... Neste livro ela [Kilomba] conseguiu problematizar esta questão, mas não foi uma polémica, ela não retirou o tradutor, mas sentiu a necessidade de ser ela própria a fazer este statement, considerando a tradução deste tradutor também. São questões difíceis, é um trabalho doloroso, mas tem de ser feito com abertura. Não é dizer ‘nunca nos quiseram aqui’. É preciso abrir a discussão e ser um bocadinho mais honesta".

"Vamos elevar este mundo de ferido/ a prodigioso", escreve Gorman.

Legenda do livro: A Colina que Subimos – Um Poema Inaugural, de Amanda Gorman, Editorial Presença

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