sábado, 24 de fevereiro de 2024

Livros: Melhorar o acesso no segundo país da Europa onde menos se lê - Expresso - Dicionário

Guilherme Pires, tradutor

"Antes de mais, uma nota relevante: faço parte de um coletivo recém-formado de tradutores literários que pretende criar espaço para sermos ouvidos e resolver os problemas que a classe enfrenta. As ideias que apresento sobre tradução e inteligência artificial resultam da reflexão e trabalho conjunto dessas pessoas.

Para promover a leitura, o livro, a tradução e a escrita, para tornar o mercado editorial mais viável, nada de duradouro se fará sem primeiro se cavar fundo e ir à raiz do problema: aumentar a literacia e os hábitos de leitura. Para isto, urge melhorar a qualidade da educação e a promoção do livro nos vários escalões de ensino, e aumentar os orçamentos das bibliotecas municipais para a aquisição de obras. É aqui que começa a captação de novos leitores e a construção de um público fiel à leitura e com espírito crítico.

Os poderes políticos devem também investir na promoção do livro enquanto objeto desejável, de entretenimento, partilha de saber e aprendizagem, aproveitando para potenciar um certo ressurgimento da leitura que se tem verificado nos públicos mais jovens, com o aumento da venda de livros dos segmentos de young adult e novelas gráficas, ou o crescimento de comunidades em redes sociais como o TikTok e o Instagram, e em clubes de leitura que alguns autores e tradutores estão a promover com assinalável êxito.

Surge aqui uma figura recorrentemente ignorada na discussão sobre a promoção da leitura, do livro e do mercado editorial: o tradutor literário. Os tradutores desempenham um papel vital na difusão da cultura, na educação dos leitores, na valorização da diferença e na defesa das línguas num mundo cada vez mais globalizado e homogeneizado. São essenciais num mercado como o português, em que os livros traduzidos representam uma parcela enorme de tudo o que se publica (mais de 60% das obras de ficção, por exemplo). Apesar disto, estes profissionais enfrentam condições de trabalho e de vida cada vez mais degradadas, com a estagnação dos seus rendimentos desde o início do século e a erosão do seu estatuto autoral. Isto deve-se quer à interpretação nebulosa da dimensão fiscal da profissão, quer a más práticas editoriais e de divulgação do livro, passando por contratos em que se lhes negam direitos com o subterfúgio de «obra por encomenda» e pela omissão do nome do tradutor em muitos contextos.

Há um aspeto em que o poder político pode (e deve) intervir para ajudar a resolver o problema: o estatuto do tradutor junto da Autoridade Tributária (AT). Os tradutores literários são criadores. Os textos que produzem têm valor intelectual e artístico e estão abrangidos pelo Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos, que os equipara aos autores traduzidos e reconhece o seu estatuto autoral. Por isso, devem poder ter acesso ao regime fiscal de direitos de autor.

Todavia, a AT entende que este não os abrange, porque a «tradução» (termo generalista, que engloba tanto a literária como a técnica e científica) já está prevista no código das atividades económicas. Esta interpretação tem gerado problemas graves na vida fiscal e financeira de vários tradutores, que se viram alvo de auditorias e multas pesadas por emitirem as faturas enquanto trabalhos de criação artística e literária, enquadramento fiscal muito mais favorável do que o que a AT quer impor, a prestação de serviços. E muitos optam por ser prestadores de serviços, com receio de represálias da parte do fisco, prejudicando os seus rendimentos.

A definição clara, pelo governo, do estatuto de criador artístico dos tradutores literários resultaria num alívio fiscal necessário e justo, bem como no reforço do seu estatuto autoral, extensível a tantas outras dimensões do ofício.

O papel da inteligência artificial (IA) no meio editorial também assume uma importância cada vez maior. Pensando no futuro do livro e da cultura, o novo governo deverá regulamentar de imediato o uso da IA na tradução e revisão de livros, proibindo-a sempre que infrinja direitos de propriedade intelectual (o que acontece sempre que se usam estas plataformas) e penalizando fortemente os que o façam. Não há volta a dar: é dever dos agentes políticos (bem como dos editores, autores, tradutores e revisores) rejeitar o uso destas ferramentas. Além de infringirem a lei, o seu uso degrada gravemente os textos e anula a voz autoral, prejudicando todos os que gostam de livros e desincentivando a leitura.

Existem, claro, outras medidas que poderiam beneficiar a leitura e o mercado editorial, já propostas e discutidas por colegas editores e livreiros. Por exemplo, alterar de novo a Lei do Preço Fixo, tornando-a mais apropriada ao tempo de vida do livro e às necessidades de agilização do PVP; aplicar ao livro um escalão de IVA de 0%, para promover o consumo; criar medidas de apoio financeiro a quem queira criar uma livraria, tanto ao nível fiscal como da especulação imobiliária. Deixo o desenvolvimento destas ideias para outras vozes."

Helena Rafael, editora (Gradiva)

"As medidas passíveis de ser implementadas prioritariamente e que teriam impacto no caso das editoras de média dimensão, poderiam começar por:

  1. O apoio público à tradução de livros que sejam considerados de relevância cultural, uma vez que a tradução representa uma fatia muito expressiva na estrutura de nos custos de um livro e consideramos que o trabalho de tradução deve ser justamente remunerado pelo valor acrescentado que traz à edição e aos leitores.
  2. Um apoio público reflectido na compra de matérias-primas como o papel, que encareceu muito no pós-pandemia. O aumento exponencial de preços trouxe um incremento no preço do livro e, na hora de fazer opções, este torna-se uma opção cara para as famílias.
  3. O preço fixo do livro, que a legislação fixa agora em 24 meses, destina-se a supostamente proteger o livreiro, mas dificulta a vida ao editor. É este quem assume o risco: edita, produz, distribui, promove, coloca nas livrarias. Após um período de curta exposição, o livro é devolvido ao editor sem que este possa flexibilizar o preço em campanhas que promovam melhores condições para os leitores."


Clara Capitão, diretora Editorial do grupo Editorial Penguin Random House

"O recente crescimento de venda de livros e, mais importante ainda, a aparente melhoria do indicador dos hábitos de leitura não retiram urgência e pertinência à necessidade de atuar a vários níveis para salvaguardar a saúde, sustentabilidade e diversidade do setor do livro, tendo em conta o seu papel inestimável na formação de uma sociedade mais esclarecida.

O livro é a mais intemporal e comprovada plataforma de aquisição de conhecimento, de alargamento de horizontes e de desenvolvimento de empatia, tolerância e pensamento crítico. Uma sociedade que lê muito é uma sociedade mais preparada e, habitualmente, mais próspera. Os tempos recentes mostram que quem não lê (sejam jornais, sejam livros) é mais permeável a notícias falsas e teorias da conspiração do que quem lê e exercita diariamente o músculo do pensamento crítico. E neste campo, apesar dos tímidos avanços, Portugal tem um registo que nos deve preocupar a todos.

Portugal é o segundo país da Europa com hábitos de leitura mais fracos, com mais de 50% dos portugueses a assumir não ter lido um único livro no ano anterior. Na pirâmide invertida dos hábitos de leitura na Europa, Portugal está na base da pirâmide, só à frente da Roménia. Curiosamente, esta pirâmide é em muito semelhante à pirâmide do PIB per capita destes mesmos países europeus. Alicerçar o setor do livro em bases mais sólidas é inevitável se queremos ter uma sociedade esclarecida, justa e diversa. O setor do livro é, dentro da área da cultura, o que gera mais rendimento e o que menos apoios estatais recebe.

As minhas propostas para a área do livro em Portugal tentam contemplar toda a cadeia de valor do livro, desde a criação (momento-zero que é muitas vezes esquecido na hora de definir políticas), à edição, distribuição e comercialização.

  • IVA zero nos livros, uma medida fundamental no reconhecimento do livro como bem essencial
  • Aumentar o valor do Cheque Livro, de forma a estimular a leitura num segmento etário que se encontra em franco crescimento mas que, na sua grande maioria, ainda não tem hábitos de leitura consolidados. Um jovem leitor que precisa de escolher em que livros investir o seu cheque-livro sentir-se-á muito mais estimulado a lê-los do que a ler livros que lhe são impostos pelo currículo escolar.
  • Oferta de kit de livros em centros de saúde e afins para distribuição na consulta pediátrica dos 2 anos, dos 4 anos e dos 6 anos.
  • Celebração do Dia Mundial do Livro, à semelhança do World Book Day do Reino Unido, com distribuição de livros grátis em escolas e disponibilização de um seleto catálogo de livros a preços muito acessíveis. Passo a passo, democratizaria o acesso à leitura nas camadas mais jovens e poria mais uma vez o livro no centro da atenção pública.
  • Rejuvenescer o papel das bibliotecas escolares e públicas como centros de acesso ao livro e do debate em torno dele. Para isso seria necessário, entre outras medidas: robustecer muito consideravelmente o orçamento das bibliotecas escolares e públicas para a aquisição de livros; dar mais formação e recursos aos bibliotecários; incentivar a criação de programas culturais para públicos diversos; criação de clubes de leitura e escrita nas escolas, com recursos humanos e financeiros que lhes permitam ser verdadeiros polos dinamizadores dos hábitos de leitura e escrita.
  • Criar um pacote de apoio a livrarias independentes, que inclua benefícios fiscais, rendas acessíveis e incentivos à dinamização cultural destes espaços.
  • Promover a presença do livro e dos seus autores na comunicação social, em todas as suas vertentes, com incentivos diretos aos agentes de comunicação social para que produzam, em muito maior quantidade, programas ou rubricas sobre a produção cultural nacional. Todos os meios de comunicação social deveriam ter limites mínimos de espaço dedicado aos livros. Portugal é dos países europeus em que o livro tem menor presença na imprensa, na rádio e na televisão, e em que os escritores estão mais afastados da vida pública.

A sobrevivência de uma comunicação social com qualidade passa também por todos os meios – não só imprensa, como rádio e televisão – dedicarem mais espaço à divulgação de livros e eventos literários e serem prescritores de livros. A título de exemplo, um telejornal tem habitualmente mais de 60 minutos de duração e passam-se meses sem uma notícia sobre um livro, um autor ou um evento literário. Uma possível ideia seria a criação de um talk show itinerante sobre livros, que fosse filmado a cada semana num lugar diferente: uma livraria independente, um clube de leitura, um festival literário, uma biblioteca, uma casa-museu.

  • Reforçar em muito o investimento em bolsas de criação literária, de forma a poder apoiar mais autoras e autores, em etapas diferentes da sua carreira, abolindo a necessidade de dedicação exclusiva. Enquanto os autores não tiverem tempo e condições para escrever, o panorama de produção literária nacional continuará a ser subdesenvolvido, longe de cumprir o seu potencial. Em vários países da Europa e da América Latina assiste-se, nos últimos anos, a uma incrível efervescência de novas vozes literárias, fenómeno que infelizmente não tem ainda paralelo em Portugal.
  • Manter o apoio à internacionalização da produção literária internacional, dotando-a de maior investimento e sobretudo garantindo que as diversas instituições que nela trabalham (Instituto Camões, DGLAB) o façam de forma mais coesa, mais integrada e mais orientada a resultados. Dou exemplos de quatro medidas possíveis que, implementadas de forma integrada, poderiam trazer excelentes resultados: a presença de Portugal nas principais feiras do livro internacionais merece ser repensada e modernizada; deveria ser criado um catálogo anual da melhor produção literária nacional do ano anterior, com excertos traduzidos e apoio à tradução garantido, à semelhança do que se faz em muitos países europeus; criação e formação, nas equipas das instituições que se dedicam a estes apoios, de recursos humanos dedicados à apresentação destes catálogos nas feiras, à semelhança do que se faz, e muito bem, nos Países Baixos e na Catalunha; programa de apoio à tradução de amostras (primeiros capítulos) de obras literárias para sua apresentação internacional.
  • Apoiar entidades (sejam editoras, associações culturais ou outras) que pretendam criar clubes de leitura em contextos desfavorecidos: estabelecimentos prisionais, instituições de acolhimento, bairros economicamente desfavorecidos ou socialmente problemáticos, entre outros.
  • Adaptar a Lei do Preço Fixo aos tempos de hoje, de modo a evitar a desvalorização do livro e a assegurar a sustentabilidade de negócios de pequena dimensão, fundamentais para a garantia da diversidade editorial
  • Apoio aos agentes do livro, sobretudo editoras, empresas produtoras de papel, gráficas e distribuidoras, para que façam a sua certificação ambiental e possam adaptar os seus meios tecnológicos e humanos, e assim contribuir para uma cadeia do livro mais verde e sustentável."

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