domingo, 27 de fevereiro de 2022

Tradutor árabe d'Os Lusíadas descobriu Portugal graças ao Nobel de Saramago - Diário de Notícias - Dicionário


Foi em 1998 com a notícia do Nobel da Literatura para José Saramago que Abdeljelil Larbi despertou para um país chamado Portugal, pequeno como a sua Tunísia mas tal como ela com uma história riquíssima. "De repente, havia entrevistas a Saramago nos jornais, reportagens que falavam do escritor mas também de Portugal e cresceu em mim uma curiosidade que acabou por ser muito reforçada quando me tornei amigo de um português que estudava em Tunes, o Tiago, que até é daqui, de Benfica, e que me falava com grande entusiasmo do seu país", conta o hoje professor na Universidade Nova de Lisboa e que acaba de ver editada a sua tradução para árabe de Os Lusíadas , inéditos até agora nessa língua apesar de dia 12 de março passarem 450 anos sobre a primeira edição da obra de Camões, durante o reinado de D. Sebastião.

E sim, esta conversa decorre em Benfica, o bairro lisboeta em que Abdeljelil Larbi vive. E foi escolha dele um restaurante-pastelaria bastante popular na zona, o Califa, curiosa coincidência este encontro com um árabe muçulmano acontecer na esplanada de um café cujo nome é o do chefe máximo do islão. Mas devo acrescentar que o professor é oriundo de um dos países árabes que mais reverencia o passado pré-islâmico, sobretudo a gloriosa Cartago, e que conciliou desde a independência de França em 1956 muito bem a religião e a modernidade, por mérito do seu primeiro presidente, Habib Bourguiba.

"Eu nasci em 1975 e de Burguiba recordo-me de o ver na televisão. Mas sobretudo conheço o seu legado por aquilo que os meus pais diziam, de como tinha transformado a Tunísia. A minha família é tradicional mas admirava muito o que ele fez, as escolas para todos, por exemplo". Pedimos dois cafés e duas águas, com gás a de Abdeljelil, ou Abdel, como costuma ser tratado pelos amigos portugueses. E eis que chega uma amiga, mas esta é tunisina apesar de viver há muitos anos em Portugal e de ser benfiquista convicta, tal, aliás, como o académico. Sihem é jornalista e conheci-a há uns anos quando trabalhava para uma embaixada. Foi ela que me pôs em contacto com Abdel e convidámo-la para assistir à conversa no Califa. E dá o seu contributo para a memória de Burguiba, que foi um grande defensor dos direitos das mulheres. "As escolas eram mistas e mesmo nas aldeias um menino sentava-se sempre ao lado de uma menina. De início, foi um choque em muitas comunidades, mas a forma como Burguiba falava com o povo, as suas conversas na televisão, convencia as pessoas", conta Sihem, um pouco mais nova do que Abdel, mas que cresceu também a admirar o pai da independência, que já octogenário foi afastado do poder. Quem o substituiu na presidência foi Ben Ali, que governou de 1987 a 2011, o primeiro dos ditadores afastados durante a Primavera Árabe, que, aliás, começou na Tunísia.

Hoje sendo a Tunísia uma democracia, foi certo do espírito aberto dos tunisinos que Abdel avançou com a tradução de Os Lusíadas, uma epopeia que glorifica Portugal como potência cristã, mas, imbuída do preconceito anti-islâmico do século XVI. "Para mim, mesmo estando convicto de a sociedade tunisina ser madura, não foi sequer uma questão que se levantou. Há árabes em muitos países, e a viver em sociedades com diferentes níveis de abertura ou de conservadorismo, e também há árabes que não são muçulmanos. A minha grande preocupação foi ser fiel à escrita de Camões e à grande cultura que mostra na obra. E ser capaz de identificar e nomear em árabe todos aqueles locais de que fala, muitos deles exóticos", garante Abdel. Fiz a pergunta porque em conversa há umas semanas com Ibrahim Aybek, que no ano passado traduziu para turco Os Lusíadas, fiquei a saber que este ponderou se as estrofes a atacar Maomé, o islão e os turcos seriam ofensivas para a sociedade, apesar do laicismo deixado como legado ao país por Mustafa Kemal Ataturk. No fim, a tradução avançou na íntegra e o único cuidado foi colocar um tracinho sobre as palavras nas poucas vezes em que o profeta era ofendido, permitindo a leitura mas assumindo o desconforto do muçulmano. Também uma contextualização histórica foi incluída, para que se percebesse a oposição geopolítica entre Portugal e o Império Otomano.

Sihem pede um café e uma queijada e eu aproveito para pedir um pastel de nata. Mas Abdel não pede mais nada e procura antes sintetizar os anos da sua vida antes da chegada a Portugal: "Nasci em Zama, uma aldeia que é a mesma Zama da batalha final de Aníbal, o grande general cartaginês, com os romanos há mais de 2000 anos. Fiz lá a escola primária e depois na cidade vizinha de Siliana os meus estudos secundários. E finalmente fui para a Universidade em Tunes, a capital, para estudar Língua e Literatura Árabe".

É já estudante universitário que Abdel, depois do Nobel de Saramago e das conversas com o amigo Tiago, vai descobrindo o que é Portugal. E depois do mestrado em Cultura Árabe Clássica muitas foram as sugestões para que estudasse espanhol, que acabaram por não dar em nada pois de repente o português pareceu-lhe uma oportunidade melhor. "Uma grande língua de cultura mas também falada por quase 300 milhões de pessoas em vários países de quatro continentes".

Além de Os Lusíadas, tradução encomendada pela Livraria Lello, Abd mel traduziu agora, igualmente a pedido da livraria portuense, A Mensagem, de Fernando Pessoa, e no seu currículo está ainda a tradução de Memorial do Convento, uma das grandes obras de Saramago.

Conto a Abdel que Saramago foi jornalista no DN, diretor-adjunto, e que se a saída da redação em 1975 foi envolvida em polémicas políticas próprias do período revolucionário pós-25 de Abril, o seu regresso foi uma festa, graças a um convite logo após ganhar o Nobel para visitar o antigo local de trabalho, o edifício histórico na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Estávamos em outubro de 1998 e Saramago foi aplaudido pela redação, muitos na época ainda seus conhecidos. E o diretor Mário Bettencourt Resendes mandou pintar um retrato do escritor, para juntar aos dos diretores que havia na Sala Verde, espécie de sala de honra. O único diretor-adjunto a merecer tal honra desde 1864.

Abdel também conheceu Saramago. Chegou a traduzir para árabe algumas intervenções do Nobel em ações de apoio à Palestina. "Olhem aqui Abdel e Saramago", diz Sihem, e mostra no telemóvel uma fotografia do tradutor a conversar com o escritor, já muito envelhecido. Nessa época, e até morrer em 2010, Saramago voltara a escrever no DN, uma crónica na última página.

Uma bolsa permitiu ao então mestre em Cultura Árabe Clássica vir em 2001 estudar português para Lisboa. A viver numa residência universitária no Lumiar, a integração foi rápida. Primeiro falava em francês com os estudantes que sabiam essa língua, que é idioma corrente na Tunísia, depois foi praticando o português. Ao fim de um ano voltou à Tunísia, mas por pouco tempo. Portugal passara a ser a aposta de vida, mesmo que tivesse, numa fase inicial, que aceitar trabalhos diversos, "num café e até em mercados de artesanato", antes de conseguir reentrar na carreira académica. A partir de 2003, começou a dar aulas de árabe no ISCTE e surgiu também a oportunidade de colaborar com a representação palestiniana.

"Em 2006, passo a trabalhar no Ilnova, o Instituto de línguas da Universidade Nova de Lisboa, ano da sua criação, e no qual continuo até hoje docente de língua árabe bem como professor de Literatura árabe contemporânea. Entretanto, fiz também o doutoramento".

Expressando-se num português fluente, com uma discreta pronúncia, Abdel, voltando ao tema dos escritores portugueses, confessa: "Achei a escrita de Saramago muito difícil quando o comecei a ler. Há duas fases: quando li Levantado do Chão, achei muito fácil o estilo da escrita. Mas foi o primeiro que li, talvez por ser o mais antigo. Depois li O Ano da Morte de Ricardo Reis, e aquilo foi mesmo difícil para mim. O meu português não era bom na época e isso também não ajudava. Depois voltei a ler Saramago, mas em árabe. E dei com muitos problemas na tradução. Perguntei aos meus professores sobre Saramago e percebi que aquele estilo era ideia dele, era o estilo dele. Mas que para traduzir era difícil".

Foi quando leu Ensaio sobre a Lucidez que Abdel finalmente conseguiu, em português, apreciar na totalidade a escrita de Saramago. Foi na fase em que lidava com o Nobel. E começou a pensar em traduzir algum dos romances, mas estavam praticamente todos já em árabe, ainda que traduzidos a partir de versões francesas ou espanholas. "Só faltava traduzir, não sei porquê, O Memorial do Convento. Comecei em 2019 e terminei um ano depois".

Tradutor também de outros autores já falecidos, como o brasileiro Jorge Amado, o tunisino diz que foi com Afonso Cruz, da nova geração de escritores portugueses, que se iniciou. "Vamos comprar um poeta foi um sucesso absoluto. Este livro foi um grande sucesso em todos os países árabes. Foi em 2016 o livro português mais vendido nos países árabes, foi muito bem recebido. Afonso Cruz chegou à feira do livro de Bagdad e esteve quatro horas a assinar livros do Vamos comprar um poeta. Acho que o tema chocou muitas pessoas, o livro era aconselhado para adolescentes, estava classificado para 12-15 anos. É uma novela pequenina, fantástica".

Grandes autores árabes traduzidos para português são poucos, com a notável exceção do egípcio Naguib Mahfouz, que beneficia da fama que ser Nobel traz. Abdel recomenda-me a leitura de Périplo pelos Bares do Mediterrâneo e Outras Histórias, do tunisino Ali Duaji, recentemente traduzido por Hugo Maia, mas escrito na primeira metade do século XX. Sihem, entusiasmada, reforça a recomendação, dizendo ser "um livro satírico, muito divertido".

Os Lusíadas e A Mensagem foram lançados na Expo Dubai e por isso estão à venda nos Emirados Árabes Unidos. Nos restantes países árabes, o tradutor diz não saber, incluído na sua Tunísia, mas que espera que sim, por tudo o que representam as obras de Camões e de Pessoa. Termino perguntando, aliás, pela Tunísia, país que visitei já e que me impressionou pelo cosmopolitismo da sua sociedade e que é o mais democrático do mundo árabe: "Costumo ir à Tunísia duas vezes por ano. Não estou otimista nem pessimista. Antes estava mais otimista, agora a coisa não está bem definida. E muitos jovens só pensam em emigrar para a Europa".

leonidio.ferreira@dn.pt

Adblock test (Why?)

Nenhum comentário:

Postar um comentário