quinta-feira, 18 de março de 2021

Festival da Canção. Relembrar a liberdade e vencer em inglês - Jornal i - inglês

No dia 6 de março o país assistiu à final do Festival da Canção. Entre as dez músicas candidatas, a canção ‘Love Is on My Side’, da banda The Black Mamba, foi a eleita para representar o país no 65.º Festival Eurovisão da Canção, que se realizará em Roterdão.

Criado em 1964, no período final do salazarismo, o Festival da Canção tem desde então dado a conhecer tanto grandes compositores como grandes intérpretes da música portuguesa. Entretanto, muito mudou, tanto na música como no país.

Entre 20 de fevereiro e 6 de março, subiram ao palco as atuações que poderiam vir a representar Portugal em Roterdão. Na disputa pelo primeiro lugar, os The Black Mamba levaram a melhor sobre Carolina Deslandes. Mas, para a história da competição, além do nome dos vencedores, ficaram duas interrogações. A primeira relativa ao dialeto em que é cantada a música vencedora. A segunda sobre a homenagem a José Mário Branco, José Afonso e Sérgio Godinho: três artistas que, em 1971, mudaram a história da música em Portugal, pelo cariz político e revolucionário das suas composições. Mas qual a ligação ao Festival da Canção?

Grito de alerta O Festival Eurovisão da Canção surgiu em 1956 como um espetáculo televisivo que tinha como objetivo unificar a Europa Ocidental do pós-guerra, através da música popular. Já nessa altura incluía diferentes géneros musicais. Portugal viu a sua primeira participação em 1964, com a voz de António Calvário em ‘Oração’, mas até 1969, mesmo com a participação de grandes nomes como Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, Carlos Mendes e Eduardo Nascimento, o país não obteve o reconhecimento desejado na competição internacional.

Após o golpe militar de 25 de Abril de 1974 a música popular acompanhou as convulsões do período pós-revolucionário. O Festival RTP da Canção refletiu e amplificou o processo de radicalização política da revolução dos cravos. Exemplo disso foi a canção ‘Alerta’, interpretada por José Mário Branco em 1975, cuja letra se referia à reforma burguesa que resistia, à democracia popular e à ditadura proletária.

Ao longo dos anos, a competição foi perdendo essa componente de intervenção política, transformando-se num evento diversificado que se expandiu e divulgou novos estilos.

As mudanças não passaram despercebidas a Armando Gama, músico e compositor. O vencedor da 10.ª edição do Festival da Canção, em 1983 (com ‘Esta Balada Que Te Dou’), nota diferenças de então para cá, “principalmente a nível das imagens, na apresentação dos cantores e cantoras que procuram uma nova estética visual e de palco”. No que toca às canções, considera que se “tem feito novas experiências – os artistas, compositores, autores e arranjadores, procuram inovar”.

O Festival da Canção serviu desde cedo de palco a canções reivindicativas que clamavam pela liberdade. Nesta 55.ª edição, a RTP escolheu homenagear três dos nomes mais consagrados na música portuguesa de intervenção: José Mário Branco, Sérgio Godinho e José Afonso, que há 50 anos gravaram no estúdio Château d’Hérouville, perto de Paris, os álbuns Mudam-se os Tempos mudam-se as Vontades, Cantigas de Maio e Os Sobreviventes.

A homenagem, através de atuações de Filipe Sambado, Cláudia Pascoal, Clã e Sérgio Godinho, não foi no entanto consensual, dadas as possíveis implicações políticas.

“Eu já vi muitas outras homenagens em Festivais da Canção. Desta vez decidiram homenagear estes três artistas que têm uma conotação claríssima com a esquerda e que realmente tiveram um processo ativo contra a ditadura salazarista. É perfeitamente legítimo”, comenta Tozé Brito, um dos nomes mais aclamados da música nacional. Ao cantor e compositor não parece que a RTP queira veicular uma ideologia específica: “O contexto de que se falou refere-se ao ano de 71, de onde saíram três álbuns importantes todos gravados em Paris. Não vejo nisso qualquer segunda intenção, é uma questão de memória”, frisa ao i.

Também Eládio Clímaco, histórico da televisão portuguesa, não vê qualquer problema em revisitar álbuns intemporais que fazem parte do nosso património: “Eu acho que a canção também é uma arma de história, uma arma de cultura, é uma arma de tudo! Não vejo as canções do festival como bandeiras políticas. As homenagens feitas fazem todo o sentido, porque são nossas, porque terão sempre força”, afirma.

Embora de outra geração, Dino D’Santiago e Agir estão em sintonia com Tozé Brito e Eládio Clímaco, e falam na urgência de revisitar períodos sombrios da história de Portugal, em que artistas foram perseguidos, vozes foram caladas e a cultura censurada.

“Acredito que vivemos tempos em que olhar para o nosso passado e para os grandes artistas que nos vão deixando faz com que nos apercebamos do seu legado e do quanto as suas mensagens foram revolucionárias”, comenta Dino D’Santiago. O músico enaltece a luta dos artistas revolucionários da época. NO seu entender, cantava-se porque havia urgência de mudar. E é imperativo que se reviva essa herança: “Não sei onde é que nos perdemos a determinada altura para que a palavra deixasse de ter essa característica revolucionária”, acrescenta.

Para Agir, “por mais homenagens que lhes sejam feitas, estas nunca serão suficientes”. E assume que atribuir intenções de ordem política a esse tributo é redutor e, possivelmente, descabido.

A questão do idioma Mas não se fala apenas de “politiquices”, também os idiomas das composições são alvo de comentário por parte do público português. O objetivo do Festival Eurovisão sempre foi apurar a voz que representa cada país além-fronteiras – e que pode ser ou não no idioma nativo.

Tozé Brito reconhece toda a legitimidade na vitória da música cantada em inglês, evocando o regulamento. Mas faz uma ressalva: “Se vamos participar num festival internacional onde é suposto representar o nosso país e se música é cultura, eu defendo que a música portuguesa deve ser cantada em português. Pela mesma razão que o cinema português deve ser falado em português, que o teatro português deve ser declamado em português e que a literatura portuguesa deve ser escrita em português”, afirma o compositor, acrescentado que a sua opinião assenta numa questão de defesa da nossa cultura.

Já Eládio Clímaco, que apresentou o festival em diversas ocasiões, confessa considerar “um purismo da língua portuguesa dizer que a nossa língua deve estar representada no estrangeiro”. E acrescenta: “Estou de acordo que seja em inglês, por que não? A música inglesa tem uma sonoridade diferente… Se bem que nós ganhámos, em 2017, com uma música fabulosa em português. A língua não interessa, interessa sim que a música e que a interpretação sejam boas. A canção vale pela melodia, pela letra e pela isenção de ser uma coisa universal. É isso que entra no coração das pessoas”.

Armando Gama admite não dar importância a esse “detalhe”. “Não vamos ficar nada beliscados por isso, nem nós, nem o Camões, Eça de Queiroz ou Fernando Pessoa”, assegura. E elogia a música vencedora: “É uma canção 100% pop com o toque dos anos 60, 70!”. Interroga-se, contudo, se poderá destacar-se no meio de tantas outras cantadas em inglês: “O que pode acontecer é perder-se no meio das outras todas que serão também cantadas em inglês. Se calhar se tivéssemos uma canção na nossa língua talvez ganhássemos com isso”, conclui.

Há ainda quem olhe para as línguas como códigos de comunicação. Dino D’Santiago sublinha a importância de comunicarmos no código que a nossa alma pedir: “Num mundo tão global quanto o que vivemos, a liberdade de expressão deve ser algo primordial para o artista. Eu próprio, quando canto em crioulo, sinto a voz da minha alma e quando canto em português sinto o meu cérebro em ação. Não é por cantar em crioulo que me sinto menos português ou vice-versa”, remata o artista.

Agir relembra que vivemos tempos plurais, até no que toca aos idiomas. “Interessa-me sim que Portugal seja bem representado. E este ano, assim como nos últimos, temos como nossos representantes músicos muito bons, uma grande canção, um autor com mais do que provas dadas e um excelente intérprete”.

*Texto editado por José Cabrita Saraiva

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