terça-feira, 30 de março de 2021

TV pra inglês ver - Dom Total - inglês

Alexis Parrot*

Se no Brasil o Big Brother impera na TV como uma das poucas produções inéditas, destacando-se em meio a reprises o final de uma novela das nove mais encurtada que as novas parcelas do auxílio emergencial, os ingleses têm ligado a televisão por motivos bem mais interessantes.

Graças a um esquema de produção cuja programação é planejada e executada com ampla antecedência, a TV britânica conseguiu manter um cronograma farto de lançamentos mesmo durante a pandemia. Só do final de fevereiro para cá foram três grandes estreias, provando mais uma vez sua soberania quando o assunto é drama policial.

Primeiro, a estreia de Bloodlands. Ambientada em Belfast e com quatro episódios, a série bagunça a vida e as certezas de seus personagens, quando um sequestro traz à tona o desaparecimento de militantes do IRA há mais de vinte anos. A expressão "desenterrar velhos esqueletos" encontra sua manifestação mais literal à medida que a narrativa avança.

Protagonizada por James Nesbitt (de Lucky man e da trilogia Hobbit), é intimista e sombria, com toques de humor negro, além de oferecer uma reviravolta surpreendente na trama. Trata-se de nova incursão pelo gênero do criador de Line of duty – que estreou sua última temporada assim que Bloodlands nos deixou de queixo caído com seu desfecho pouco convencional. O resultado foi tão excepcional (de audiência e crítica) que, logo após a estreia, a BBC já encomendou o retorno da série.

Mesmo com apenas dois episódios já exibidos, é lícito imaginar que o último ato da impecável Line of duty irá honrar a tradição do programa. Os dilemas e contradições dos detetives de Birminghan, responsáveis por investigar os malfeitos da própria corporação, chegam ao sexto ano com fôlego para mais seis temporadas, apesar de significar o seu canto do cisne.

Com perícia de ourives, o roteiro evoca toda a história da série. Personagens outrora coadjuvantes ganham o centro das atenções, situações já vistas em temporadas passadas se repetem e antigas subtramas voltam em busca de resolução. Segue também o hábito de escalar uma figura de peso para integrar o elenco a cada novo ciclo. Após a participação de nomes como Thandie Newton e Stephen Graham, dessa vez a convidada é a sempre competente Kelly Macdonald (de Trainspotting e Boardwalk empire).

Tratados como traidores pelos companheiros de farda, estes bravos detetives e seu comandante (o veterano Adrian Dunbar) são pagos para desconfiar. Tão ou mais imperfeitos que os próprios criminosos que se propõem a desmascarar, vivem na corda bamba entre o ético e o pragmático, além de pagar alto preço em nome do idealismo. Acabam sendo tão indispensáveis quanto ingênuos.

Last but not least, ontem à noite foi ao ar no Reino Unido o último episódio da temporada final de Unforgotten, o sensível drama de um esquadrão da polícia de Londres dedicado a desvendar crimes recém-descobertos, mas cometidos há trinta, quarenta anos atrás. Já escrevi sobre a série por aqui e costumo compará-la tematicamente à norte-americana Cold case, porém, com alma.

Além das investigações, acompanhamos também as agruras da vida pessoal da séria protagonista Cassie Stuart (Nicola Walker), e em menor grau de seu fiel escudeiro Sunil Khan (o irretocável Sanjeev Bhaskar). Após o melancólico epílogo da temporada anterior, quando se afastou do trabalho, vamos reencontrá-la de volta ao batente enquanto tenta lidar com o Alzheimer do pai.

Apesar de muito triste, o ponto final do programa é coerente com a trajetória de suas quatro temporadas. Consegue dar para a personagem de Walker a paz que nunca conseguiu encontrar como policial, testemunhando durante anos as consequências de crimes não resolvidos naqueles que sobrevivem com a dúvida e o sentimento de injustiça acumulados. 

Além das evidentes qualidades artísticas, as três séries apresentam alguns pontos de convergência. A política, por exemplo, é uma constante: vetor de corrupção, sinônimo de crime e desencanto. Todas elas (Line of duty especificamente nesta temporada e de maneira autorreferente) desenvolvem-se a partir do mote de que todo mundo tem um passado – que pode emergir a qualquer momento.

Outro fator comum é a conclusão que tudo se resume à família, com seus segredos, pecados, arrependimentos e raras alegrias. Em nome dessa instituição, loucuras são cometidas e por ela pode-se até morrer; mas nunca se livrar, por mais que se deseje. É como a morte; algo que não se pode evitar.

Enquanto diligências e interrogatórios vão se sucedendo, estes programas postulam discussões éticas e filosóficas; sem arrogância, tentam dizer do mundo em que vivemos, da natureza humana. Neste sentido, não deixam de ser descendentes de Broadchurch e Prime suspect, dois clássicos recentes da TV inglesa. Do ponto de vista dramatúrgico são exemplares por usar o gênero policial como meio para reflexões e não apenas um fim em si mesmo – como é o hábito da TV dos Estados Unidos.

A despedida de Line of duty e Unforgotten não é uma boa notícia, mas Bloodlands está aí (e outros programas virão, certamente) para sustentar este legado e amplificá-lo – com DNA de Sherlock Holmes e todas as bênçãos de Agatha Christie.

LINE OF DUTY: produção original BBC; cinco temporadas disponíveis na Netflix
BLOODLANDS: produção original BBC; indisponível no Brasil
UNFORGOTTEN: produção original ITV; indisponível no Brasil

Frase da semana

Do ex-juiz e ex-ministro Sergio 'não me lembro' Moro em live para empresários (com trechos reproduzidos ontem no Jornal Nacional), dizendo não se arrepender de nada que tenha feito (ao mesmo tempo em que revela involuntariamente a ignorância no francês):

"Dá pra tocar ao fundo a Edith Piá, o je ne me regrette rien"

*Alexis Parrot é crítico de TV, roteirista e jornalista. Escreve às terças-feiras para o DOM TOTAL.

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