domingo, 16 de outubro de 2022

Primeira tradução para arménio de Mensagem de Fernando Pessoa - Diário de Notícias - Dicionário

Vahe Mkhitarian, o presidente da Associação de Amizade Portugal-Arménia, e Lusine Brutyan, tradutora, não escondem a vontade de sentir finalmente nas mãos a edição em arménio de Mensagem, de Fernando Pessoa, que está já a ser impressa em Ierevan, a capital da Arménia. "Esta é a primeira tradução completa, de um livro inteiro, deste autor português para a língua arménia, garante Mkhitarian. "Antes só uns poemas soltos", acrescenta Brutyan. A conversa, num café lisboeta, é em português, pois o presidente da Associação de Amizade há mais de duas décadas vive em Portugal e a tradutora já há cinco anos fez como opção de vida este país tão longe do seu, situado no outro extremo da Europa.

"Formei-me em tradução em Ierevan. Depois estudei português a ver a televisão, através da internet, e com a ajuda de recursos que encontrei também na internet. De início, eram em português do Brasil, mas depois consegui estudar português de Portugal. E ao fim de dois meses já era capaz de escrever a carta a pedir a bolsa à Fundação Gulbenkian", explica Brutyan, de 35 anos, que chegou com um conhecimento B2 e depois aperfeiçoou o português na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

A bolsa foi-lhe atribuída pelo Serviço das Comunidades Arménias da Gulbenkian, fundação que tem o nome de um magnata arménio do petróleo que viveu os últimos anos em Portugal mas não esqueceu nunca o seu povo.

Pessoa foi uma escolha lógica, "como seriam Eça de Queirós ou José Saramago", explica Mkhitarian, pois desde a criação em 2016 da Associação de Amizade havia intenção de traduzir grandes nomes da Literatura Portuguesa para arménio e vice-versa. Faltava, porém, quem. A hipótese de se encontrar um tradutor na numerosa comunidade arménia no Brasil chegou a ser equacionada, mas um encontro de Mkhitarian com Brutyan em Ierevan mudou tudo. "Numa ida minha à Arménia, a Lusine contactou comigo e mostrou-me o seu Guia de Conversação Português-Arménio, ainda por editar, e disse-me que ia viver em Portugal. Percebi logo que estava ali uma pessoa-chave para o nosso projeto", explica Mkhitarian, que é economista de formação e trabalha nos serviços centrais da Fundação Gulbenkian.

"O passo seguinte é traduzir grandes nomes da Literatura Arménia para português, e há várias figuras de renome, como Hovhannes Tumayan, que viveu entre 1869 e 1923, em boa parte, pois, contemporâneo de Fernando Pessoa."

A escolha de Mensagem, livro de Pessoa editado em 1934, um ano antes da morte do poeta, aos 47 anos, foi de Brutyan, hoje também membro da Associação de Amizade. "Uma tradução tem também de ser feita com o coração, por isso a tradutora tinha de sentir uma relação com a obra a traduzir", diz Mkhitarian.

E Brutyan confirma que desde que começou a aprender português e que decidiu vir para Portugal leu muito sobre o país, também sobre os seus escritores e Pessoa conquistou-a

Quanto à dificuldade natural de verter o pensamento de um português, a tradutora confessa não a ter sentido muito, pois "há muito em comum entre portugueses e arménios, têm uma sensibilidade semelhante, até existe nas duas línguas palavra para exprimir saudade, karót em arménio".

Mkhitarian intervém para acrescentar que no seu último concerto em Lisboa, o nonagenário Charles Aznavour, francês mas arménio de origem, conversou com o público sobre a correspondência entre saudade e karót. "A vossa saudade é da distância, porque chegaram a ter um império enorme, e os portugueses iam para todo o mundo. O nosso karót é a ausência de um território, saudade de uma terra que nos foi tirada", nota o presidente da Associação de Amizade, referindo-se ao passado da Arménia, país que coexistiu com o Império Romano (foi o primeiro reino cristão do mundo) e que chegou a estender-se por vastas áreas da península da Anatólia, mas hoje é um pequeno Estado, na Transcaucásia, independente desde 1991, quando a União Soviética se desintegrou. O Monte Ararat, símbolo nacional e que faz parte da paisagem de Ierevan, fica, porém, do outro lado da fronteira com a moderna República da Turquia.

Mas se são só três milhões os arménios na sua república, a diáspora é grande, sete milhões (gente como a família Aznavourian, o apelido do célebre cantor antes do afrancesamento), muito espalhada. mas em regra ligada à noção de pátria e de defesa da língua e cultura nacionais, como mostra a atividade da associação em Portugal a que Mkhitarian preside.

Já impresso pela Edit Print, mas não à venda ainda, a edição arménia de Mensagem (Patgám) deverá ter lançamento em Ierevan e Lisboa, diz Mkhitarian, que aproveita também para agradecer às entidades patrocinadoras (Direção-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, Instituto Camões e Fundação Calouste Gulbenkian), assim como a Clara Riso, diretora da Casa Fernando Pessoa, autora do prefácio, e a Mário Linhares, "um grande ilustrador que muito ajudou a dignificar este livro".

A Associação de Amizade Portugal-Arménia tem já planos para nova tradução, também por Brutyan, com um dos livros de Saramago, Nobel da Literatura em 1998, a ser forte possibilidade. O passo seguinte é traduzir grandes nomes da Literatura Arménia para português, e há várias figuras de renome, como Hovhannes Tumayan, que viveu entre 1869 e 1923, em boa parte, pois, contemporâneo de Fernando Pessoa.

Obras de alguns autores portugueses têm sido traduzidas para arménio ao longo dos tempos, como ainda recentemente (2019) Morreste-me, de José Luís Peixoto.


Nota: Artigo atualizado com correção sobre publicação de Mensagem como sendo a primeira de um autor português na Arménia e inclusão de referência a livro recente de José Luís Peixoto traduzido para o arménio.

leonidio.ferreira@dn.pt

Adblock test (Why?)

Nenhum comentário:

Postar um comentário