sábado, 5 de novembro de 2022

"Ainda não chegámos a um mundo onde não há barreiras de linguagem" - SIC Notícias - Dicionário

A ideia levou surgiu “num fim de semana de surf”, conta Vasco Pedro, um dos co-fundadores da Unbabel. Criada em 2013, a empresa tem vindo a desenvolver um serviço de tradução, através da atuação conjunta da Inteligência Artificial (IA) e do trabalho humano. O objetivo é diminuir a barreira entre línguas, tornar a comunicação mais próxima e, assim ajudar na expansão dos negócios.

Tendo em conta que o mercado está cada vez mais internacional, considera que a língua ainda é uma barreira para os negócios?

Eu acho que a língua ainda é uma das grandes barreiras. Quanto mais removemos barreiras geográficas, mais a língua se torna uma das grandes barreiras a ultrapassar. Isso vê-se a muitos níveis: a velocidade com que as empresas se lançam (ou não) para novos mercados, a velocidade com que começam a suportar a discrepância entre os processos de venda em várias línguas, o facto do apoio ao cliente não estar nessas línguas.

Uma das coisas mais óbvias é a contratação de colaboradores. Torna-se importante que seja na língua em que toda a gente consegue colaborar. Ainda não chegámos de maneira nenhuma a um mundo onde não há barreiras de linguagem.

O futuro passa por acabar com as barreiras de linguagem, mas não passa por deixar de haver línguas diferentes. O que estamos a ver é, por um lado, a pressão da globalização - para que as empresas estejam presentes em mais mercados -, por outro, a expectativa de que, em cada mercado, [as empresas] falem a língua desse mercado. Ultrapassar essa barreira de linguagem significa ser capaz de operar em muitas línguas diferentes, de uma maneira simples e escalável.

Estamos também a assistir a uma maior internacionalização no mercado do trabalho - com mais pessoas a trabalhar de diversos pontos do mundo. Considera que a expansão do teletrabalho pode também ser uma vantagem para acabar com a barreira da língua?

Eu não tenho números específicos, mas eu duvido que haja muita gente a contratar colaboradores que não falem uma língua comum com a empresa onde trabalham. As barreiras de linguagem são mais óbvias no caso da contratação: do ponto de vista geológico consegue-se contratar em todo o lado, mas as pessoas têm de conseguir falar, comunicar, estar numa reunião de Zoom e trocar ideias. Se não, torna-se impossível.

Começo a sentir que vai haver uma divisão do tipo de empresas e culturas diferentes e as pessoas vão autoidentificar-se com o tipo de cultura onde querem pertencer - o que é perfeitamente natural, e acho que é bastante saudável. Vai haver cada vez mais empresas a dizer “nós funcionamos desta maneira, para nós isto é importante”.

Assim como há muita gente que quer aproveitar a liberdade de poder viajar mais e poder trabalhar em sítios diferentes, há pessoas para quem isso não faz sentido. Há pessoas que têm filhos e não têm sequer a opção de estar em casa porque têm bebés que tornam muito difícil trabalhar focado. Há todo o tipo de situações nos seres humanos e acho que vai haver cada vez mais empresas que vão conseguir adaptar-se às diferentes necessidades

Como funciona a Unbabel e de que forma a IA é usada para traduzir conteúdos para as diversas línguas?

O mundo mudou de um conceito de projeto - em que havia um livro, traduzia-se o livro e publicávamos esse livro - para uma criação constante de conteúdo. A quantidade de conteúdo que está a ser criado hoje em dia - através de redes sociais, plataforma de conteúdos de marketing, várias coisas diferentes - implica que tem de haver uma tecnologia para lidar com esta escala. E a IA tem um papel super importante. Uma das áreas iniciais da IA já era a tradução automática, é uma coisa que já está a ser desenvolvida há muito tempo. Nos últimos anos, com o avanço das redes sociais, a tradução automática está bastante melhor.

A Unbabel está a criar uma plataforma de language operations com componentes de IA – tais como tradução automática – e também tradução humana. Este sistema híbrido, em que o ser humano e a IA trabalham lado a lado e de uma forma complementar, é a grande vantagem da Unbabel. No fundo, é a escalabilidade e eficiência da tradução automática com a qualidade da tradução humana. E tudo o que é tocado por um ser humano, é depois usado para retreinar os componentes de IA. Todo o sistema fica melhor ao longo do tempo.

Cada língua tem as suas particularidades e expressões idiomáticas. Como são geridas estas questões na Unbabel e como se “ensina” a IA a traduzir estas expressões?

Toda a tradução automática é de natureza estatística, é baseada nos dados. Não há nada inerentemente complicado [em traduzir] as expressões idiomáticas, no sentido que estas também têm tradução. O que há é uma grande variabilidade de expressões idiomáticas. Os seres humanos são particularmente bons na tradução de nuances culturais, nas quais se incluem as expressões idiomáticas. Uma vez feitas essas traduções, os sistemas automáticos começam a usá-las para traduzir também.

O que na Unbabel acontece é que nós não temos só um motor de tradução automática, temos um motor de tradução automática para cada empresa e para cada língua. Toda essa série de componentes da IA estão constantemente a adaptar-se à voz, ao tom de voz e às expressões idiomáticas do cliente e da empresa para o qual estão a ser utilizados. Há uma adaptação constante à maneira de falar das empresas que são nossas clientes.

Quais são os principais desafios quando se tenta transferir a linguagem, que é orgânica, para uma máquina?

Um dos principais problemas é que se menospreza o quão difícil este desafio é. Os seres humanos são especialistas em linguagem, porque falam desde bebés. E como é algo que toda a gente faz, parece-nos que devia ser algo fácil das máquinas fazerem. Mas, no fundo, o nosso cérebro está a operar mecanismos super complexos para conseguir comunicar e falar constantemente. Quando tentamos replicar isso nas máquinas, há muitas partes que não sabemos bem como é os seres humanos fazem. É difícil essa replicação e há tendência para criar o output robotizado e mecanizado.

A linguagem é extremamente essencial para a criação de ligação e confiança. E vemos isso entre seres humanos: quando conhecemos alguém que tem um sotaque diferente ou que não fala bem, é muito difícil não fazer pressuposições sobre essa pessoa. Seja ao nível da inteligência, do contexto, do estatuto social… Às vezes nem nos apercebemos que estamos a fazer isso. A mesma coisa acontece com as máquinas: um sistema de tradução automática que produz algo robotizado, automaticamente quebra a nossa confiança.

Um exemplo interessante: nós tínhamos uma empresa de gaming que tentou usar a tradução automática na página onde os utilizadores tinham de inserir os dados do cartão de crédito. A conversão era muito baixa, porque as pessoas não confiavam. Quando começaram a usar a Unbabel e a comunicação passou a ser ao nível humano, as conversões de cartão de crédito aumentaram muito. Porque as pessoas sentiam-se confiantes.

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