quinta-feira, 19 de outubro de 2023

"Quem ler esta tradução em inglês vai descobrir que Fernão Lopes é um dos maiores cronistas da Europa" - Diário de Notícias - Dicionário

Vai ser agora lançada em Portugal aquela que é a primeira tradução integral para inglês das Crónicas de Fernão Lopes. Pergunto-lhe, é a primeira tradução integral para inglês ou é mesmo a primeira para qualquer língua?
É a primeira tradução integral para qualquer língua. A única que houve, de certa forma, anteriormente, era para francês, mas só foi traduzida a Crónica de Dom Pedro.

E as traduções que havia até agora para inglês eram excertos?
Sim, eram excertos. Apareceram alguns já há bastante tempo, de certa forma ligados à expansão portuguesa. Não totalmente, mas nos anos 80 houve uma seleção de textos que foi publicada com o título The English in Portugal 1367-87. Foi traduzida por alguns colegas nossos, ingleses, mas selecionaram os excertos que falavam acerca da presença dos ingleses em Portugal, como diz o título.

O que é que um estudioso, um académico agora mundo fora, porque o inglês é a língua franca dos nossos dias, pode tirar destas Crónicas de Fernão Lopes? É perceber a História de Portugal, a História da Península Ibérica, a própria História da Europa?
É tudo. Obviamente, dedica-se essencialmente à História de Portugal, mas Fernão Lopes também transcreveu muitos eventos ou acontecimentos que se desenvolveram em Castela, também em Aragão, e que eram importantes porque ele notava como a nossa própria vida dependia dos acontecimentos em Castela, precisamente pelo jogo de dinastias e de posse do poder. E também porque durante a década de 1380 e também na de 1370, portanto logo em 1373, há tropas britânicas que vêm ajudar Portugal nas suas lutas contra Castela e é interessante porque Castela muitas das vezes era auxiliada pelos franceses, o que significa que nessa época em que se estava a desenrolar a Guerra dos 100 anos, ela continuava a desenvolver-se, agora em casa de outros, que era o território ibérico naquela altura.

Da sua experiência como professora, tanto em universidades inglesas como americanas, há interesse dos medievalistas e de outros académicos por Fernão Lopes?
Sim, notei isso, mas não no meu campo de ensino, porque no estrangeiro o meu campo de ensino era mais língua e cultura. Mas, por exemplo, quando participava em congressos internacionais, os meus colegas ingleses e americanos tinham grande interesse porque davam-se conta do que existia nas crónicas de Fernão Lopes, mas não podiam citar diretamente porque não tinham acesso imediato à totalidade das crónicas. Eles gostam de estar bem fundamentados, então havia um pedido constante sempre que nos encontrávamos para se fazer uma tradução. E esta tradução integral vai corresponder ao seu interesse.

Estas crónicas que chegaram até aos nossos dias falam dos dois últimos reis da primeira dinastia e também de D. João I, fundador da dinastia de Avis. Além do valor de testemunho histórico, há um valor literário também em Fernão Lopes?
Absolutamente. Fernão Lopes é um escritor excelente, com uma grande fineza de análise de personalidades, de situações que ele é capaz de transmitir, as suas descrições são muito interessantes. Há alguns académicos que acham que ele tem uma qualidade cinematográfica, da forma como ele muda de uma cena para a outra, quando está a descrever acontecimentos que são simultâneos, na descrição das personalidades, da forma como define as personagens e já nessa definição das personagens dá uma ideia da forma como as coisas vão decorrer, qual é o seu papel, se o papel é positivo, se é negativo. Portanto, tem um manuseamento também da língua de uma forma muito fina.

Esse é um dos desafios da tradução. É possível passar essa qualidade literária, em português, para uma tradução?
Nós tentámos, difícil é, foi por isso que ao fazer a tradução passou por muitas revisões, há secções que foram revistas umas sete ou oito vezes.

Estamos a falar de um compromisso entre respeitar o estilo, mas também tornar percetível para o leitor da atualidade.
Absolutamente. E também quando está a ser traduzido para inglês, que é uma língua muito mais sucinta e mais direta, essa foi também uma das preocupações: fazer com que o texto não perdesse o seu toque medieval, digamos assim, mas ao mesmo tempo que não fosse arcaico, que fosse lido com grande facilidade, com grande fluência, e que fosse aceite naturalmente dentro da língua inglesa.

Este é um projeto que já vem de há mais de dez anos?
Foi completado em doze anos.

Quem são os principais financiadores?
Dos financiadores, o maior de todos foi o National Endowment for the Humanities, a maior instituição de financiamento para a pesquisa académica nos Estados Unidos. A seguir foi a nossa Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas em Portugal. Tivemos financiamento também da FLAD e do Instituto Camões. Nos Estados Unidos tivemos igualmente um pequeno financiamento da Universidade da Geórgia, do Wilson Center, e também da Anglo-Portuguese Society, em Londres.

Falámos já da qualidade literária de Fernão Lopes. Neste momento, a escrita deste português do século XV está disponível para pessoas que sabem inglês, portanto, muitas centenas de milhões. O que é que vão descobrir, além da História? Vão descobrir um grande cronista?
Vão descobrir que Fernão Lopes é um dos maiores cronistas da Europa Ocidental, a par com os mais conhecidos da época que escreveram sobre este período, que são Pedro López de Ayala, em Castela, e Jean Froissart, em língua francesa.

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