terça-feira, 23 de novembro de 2021

Conheça a origem histórica de expressões consideradas racistas - Agência Lupa - inglês

Algumas expressões da língua portuguesa têm conotação racista. Embora a origem de termos como “mulata” ou “feito nas coxas”, por exemplo, seja imprecisa e até mesmo controversa, eles ganharam significado pejorativo ao longo dos anos e hoje são rejeitados pelos movimentos negros por serem considerados ofensivos.

No último sábado (20), a Lupa, em parceria com o portal Notícia Preta, publicou uma lista de sete expressões comumente utilizadas e cujos significados são considerados racistas. A história por trás de cada uma delas, contudo, foi alvo de contestações. Nem todas remontam ao período escravista brasileiro ou inicialmente referiam-se negativamente às pessoas negras escravizadas.

Pesquisadores ouvidos pela Lupa convergem no entendimento de que os 300 anos de sistema escravista no Brasil interferiram no uso que fazemos da linguagem. Segundo especialistas, mesmo que algumas palavras não carregassem um sentido negativo para a população negra originalmente, elas passaram a ser produto de uma sociedade que vive o racismo estrutural. “Posso ter qualquer palavra, mas se ela for embebida de um significado ao longo do tempo, seja por questões históricas ou sociais, ela receberá uma carga de informação que vai além do sentido denotativo. Porque é carregada de sentido, de emoções. Por isso ofende tanto”, pondera a doutora em Estudos Linguísticos Maristela Gripp, professora de Letras na área de linguagem e sociedade. 

Para o professor de história Jorge Amilcar de Castro Santana, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), as contestações sobre a origem de termos considerados racistas pela população negra são comuns. “Sempre existem divergências e hipóteses, é sempre uma contestação para tentar desconstruir o fato de que aquilo talvez não tenha significado racista. Mas por mais que não tenha origem racista, ela se torna. Buscar a origem como forma de negar o que significa a expressão hoje é um dos reflexos do nosso racismo”, opina.   

A fundadora e CEO do Notícia Preta, Thaïs Bernardes, ressalta que quando uma pessoa diz que tal termo o fere, isso deve ser respeitado. “Falar meia tigela é algo que me fere porque nós, pessoas negras, remetemos isso ao período da escravidão, quando nossos antepassados eram tratados como animais e ganhavam meia tigela quando não cumpriam um trabalho, independente se esse termo tem diferentes explicações. Então se aquilo fere um determinado grupo de pessoas, aquilo tem que ser banido do vocabulário.”

A Lupa verificou a origem de sete dessas expressões e pediu sugestões de usos alternativos para cada uma delas. Confira:

“Mulata”

Segundo a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, de Nei Lopes, mulato quer dizer mestiço de branco e negro, em qualquer grau de mestiçagem. A origem do termo, porém, remonta a duas teorias. Uma delas sugere que a palavra deriva de mula. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa indica que mulato é o mesmo que jumento. Já a etimologia da palavra remonta ao século 15, que seria um híbrido de jumento (mulato) e mulo (macho jovem). Parte da militância negra rejeita o termo em razão dessa origem etimológica.

Uma outra teoria, defendida pela historiadora Lita Chastan, sugere que a palavra poderia ter se originado do termo árabe muwallad, que significa mestiço de árabe com “não árabe”. “O homem que ‘garimpou’ essa palavra, conhecia, presenciara e presenciava essa mestiçagem, tanto assim, que buscou em sua língua uma definição (registrando e batizando-a), não deixando margem a nenhuma dúvida: muwallad é igual a mestiço de árabe com ‘não árabe’”, diz. Essa mesma origem é defendida pelo historiador norte-americano Jack D. Forbes, em seu livro “Africans and Native Americans: The Language of Race and the Evolution of Red-Black Peoples”. Independentemente da origem, contudo, a palavra também é vista como “ofensiva” na língua inglesa, segundo o dicionário de Oxford.

De acordo com o professor de história Jorge Amilcar de Castro Santana, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), nos tempos coloniais os mulatos eram frutos de relações interraciais. “Dentro da hierarquia racial do Brasil colonial e do império, os mulatos conseguiam um pouco de ascensão social em comparação aos negros. Contudo, eram pessoas consideradas mais frágeis e problemáticas justamente por serem frutos de relações entre as raças e que, portanto, perdiam as características ‘originais’”. 

A doutora e professora de Letras na área de linguagem e sociedade, Maristela Gripp, enfatiza que atualmente a palavra tem conotação racista, independentemente de sua origem etimológica. “E socialmente a conotação é muito importante. Os mulatos são mais claros, por exemplo, e historicamente tinham mais ‘entrada’ na sociedade. Por isso que uma expressão, quando está relacionada ao racismo, não pode ser analisada apenas pela questão gramatical”, afirma.

Alternativa: negra


“Feito nas coxas”

A origem da expressão é imprecisa. Uma das hipóteses, a que é mais amplamente difundida, refere-se à prática colonial de fabricar telhas usando como molde as coxas das pessoas negras escravizadas. Por causa disso, algumas telhas ficavam largas, outras finas e o termo passou a ser usado para designar uma coisa mal feita.

Em 2006, o arquiteto José La Pastina Filho contestou essa teoria em um ensaio, chamado “Eram as telhas feitas nas coxas das escravas?”. No texto, ele argumenta que as telhas coloniais brasileiras tinham de 45 a 80 cm de comprimento. Já as medidas das coxas de um homem de 1,80m de altura, por exemplo, não seriam compatíveis com o tamanho das peças. “Sem maiores preocupações com aspectos de anatomia humana, se estabelecermos uma simples regra de três, poderemos verificar que, para fabricar uma telha de 77cm, precisaríamos contar com um escravo de 3,95m de altura”, escreveu.

Esse argumento, contudo, não é endossado pelo professor de história Jorge Amilcar de Castro Santana. Segundo ele, as pesquisas sempre apontaram para a hipótese de que esses materiais foram em algum momento moldados nas pernas de mulheres escravizadas e que, por isso, não tinham padrão. “Podia sim ter uma variedade de tamanho porque temos que pensar que vieram da África várias etnias, pessoas com diferentes padrões físicos e tipos de corpos”, pontuou.

O professor de português Cláudio Moreno sugere outra origem possível para a expressão. De acordo com ele, “nas coxas” seria uma referência ao sexo intercrural, modalidade sexual sem penetração na qual os participantes apenas roçam as coxas. Nesse sentido, a expressão significaria “afobadamente, apressadamente, deixando malfeito e incompleto o que poderia ser melhor”.

Alternativa: insatisfatório, sem capricho


“Criado-mudo”

A expressão foi apontada, diversas vezes, como uma referência à escravidão no Brasil, mas há questionamentos sobre a origem. Nessa explicação, os criados, como seriam chamados os escravos que faziam trabalhos domésticos, passavam horas parados ao lado da cama dos senhores, atendendo suas necessidades silenciosamente. Conta-se que eles poderiam ser repreendidos caso se movessem ou falassem, e terem suas línguas cortadas. Em 1820, uma pequena mesa teria sido inventada para ficar ao lado da cama para apoiar objetos, a mesma função do “criado”. Para não haver confusão entre o escravo e o móvel, a mesa foi chamada de “criado-mudo”.

Essa suposta origem da palavra foi usada em uma campanha do Dia da Consciência Negra de uma loja de móveis em 2019, que mudou o termo para “mesa de cabeceira”. Alguns dizem que a narrativa foi inventada para promover as vendas. O site E-Farsas, que também verificou a história da expressão, aponta que a relação entre criado-mudo e escravidão não é encontrada nas buscas do Google antes do ano da campanha, sugerindo que a empresa possa ter criado a história. 

As críticas sobre a origem do termo também mencionam outras questões. Uma delas é a de que mesas ao lado da cama já haviam sido inventadas anteriormente. Outra, diz que se trata de uma adaptação do termo “dumbwaiter” (criado mudo, em tradução do inglês), um elevador usado para trazer alimentos de um andar para o outro. Na língua inglesa, a palavra é atestada desde 1749, como “uma estrutura com prateleiras entre uma cozinha e uma sala de jantar para transportar alimentos, etc”, segundo o Dicionário Online de Etimologia. 

No Diccionario da Língua Brasileira de Luiz Maria da Silva Pinto, de 1832, não consta o significado de criado-mudo. Já no Diccionario da Lingua Portugueza de Antônio de Moraes Silva, de 1890, o nome que se dava para a “banquinha que se põe junto a cabeceira do leito” é “donzella”, mas criado-mudo também não aparece. Em ambos os dicionários, “criado” não é sinônimo de escravo. As pesquisas mostram que naquele período a palavra “criado-mudo” muito provavelmente ainda não era utilizada com o significado que se conhece hoje. 

Alternativa: mesa de cabeceira


“Não sou tuas negas”

De acordo com Maristela Gripper, pós-doutora em linguística e professora da Uninter (PR), essa é uma expressão extremamente racista. “Na época da escravidão, eram recorrentes estupros, assédios e agressões contra as mulheres negras. Já com as mulheres brancas o tratamento não era o mesmo. A frase se remete a essas mulheres, escravas, que no imaginário popular tudo podia se fazer”, aponta em artigo.

A doutora em Estudos da Linguagem do programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC Maria Inêz Probst Lucena afirma que a expressão traz “o discurso racista e machista, a ideia de posse e de propriedade do homem sobre a mulher negra, marcando fortemente a desvalorização dessa mulher, como se ‘as negas’ fossem pessoas com que se pudesse fazer o que quisesse”.

O racismo não está apenas na origem da expressão, mas também pelo seu sentido, que ainda carrega a camada do sexismo. Este duplo fenômeno, racismo e sexismo, é tema de artigo da antropóloga Lélia Gonzalez, pioneira nos estudos sobre Cultura Negra no Brasil. Ela aponta que o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. 

Alternativa: tenho valor e me respeite!


“Doméstica”

Não há uma conotação racista na origem da palavra “doméstico”, documentada em seu uso como adjetivo pela primeira vez no final do século 14, de acordo com o Índice do Vocabulário Português Medieval, de Antônio Geraldo da Cunha. O termo aparece no texto Orto do Esposo, obra anônima portuguesa publicada naquele período. Em um trecho do livro, o autor diz “emiigo domestico”, ou seja, “inimigo doméstico“. As primeiras expedições escravagistas portuguesas na África ocorreram em meados do século 15, e as navegações portuguesas só chegariam ao Brasil no início do século 16 — ou seja, cerca de 100 anos depois. Já o uso de mão de obra escrava africana no país teve início em meados do século 16.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa estabelece que a palavra “doméstica” tem origem no latim “domesticus/domestica/domesticum”, com o sentido de “de casa, doméstico, da família, particular, privado”. A palavra “domus” significa “casa, morada, habitação, domicílio” e vem do grego “dómos” (“casa, habitação, morada dos deuses”). Na Roma Antiga, há referências inclusive aos “protectores domestici”, ou “protetores domésticos”, guardas de elite que atendiam ao imperador após uma reorganização militar feita pelo governo de Constantino, segundo o livro The Cambridge Ancient History, volume 12.

O uso de “doméstica” como substantivo, no entanto, para definir uma empregada que trabalha em uma casa, não tem origem definida. Segundo o Houaiss, nesse caso trata-se da pessoa que “mediante salário, presta serviços ligados à manutenção periódica de um domicílio”. Uma busca em edições antigas no acervo do jornal O Estado de S. Paulo mostra que, no século 19, o termo não era normalmente utilizado dessa forma. Apenas no início do século 20, depois da abolição da escravidão, o adjetivo começa a ser utilizado para se referir a trabalhadores assalariados. Em 23 de março de 1918, por exemplo, foi publicado um anúncio com o título “Serviço doméstico”, em que se procura uma “criada”

Nos anos 1920, já é possível encontrar no jornal menções ao termo com a conotação de trabalho em um domicílio, ainda como adjetivo. Em anúncio de 4 de maio de 1924, uma família “de alto tratamento” procura uma “governante doméstica”. Essa mudança no uso continua na década seguinte. Uma nota publicada em 29 de maio de 1930 refere-se a “domésticas” que precisaram se apresentar em um serviço da prefeitura de São Paulo que realizava a fiscalização dessa modalidade de trabalho. A partir dos anos 1950, o termo começa a aparecer com maior frequência, já muitas vezes associado a pessoas que realizam esse tipo de serviço.

Alternativa: empregada


“Meia tigela”

Não há um consenso sobre a origem da expressão, que significa de origem medíocre, de posição social medíocre ou de pouco valor, segundo o dicionário Michaelis. Há diversas versões sobre a origem deste termo.

“Uns dizem que a expressão só se usava nas senzalas. Outros, que era corrente na época da monarquia portuguesa”, afirma Dad Squarisi, formada em Letras pela UnB, com especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. “Em tempos idos e vividos, tinha significado concreto. O trabalhador recebia alimento no lugar onde exercia as funções. Dependendo do valor atribuído ao serviço prestado, havia gente que merecia tigela inteira e gente que recebia meia tigela. Com os escravos era diferente. Eles tinham uma tarefa para ser executada em determinado tempo. Quem chegava lá, recebia a tigela cheia. Quem ficava no caminho, só a metadinha”, explica.

“Segundo a luta antirracista, [o termo] provém de situações de trabalho escravo, em que os trabalhadores eram punidos com metade da porção de alimentos, sempre que não conseguiam produzir o esperado pelos patrões”, afirma a doutora em Estudos da Linguagem do programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC Maria Inêz Probst Lucena.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa cita o livro A Casa de Mãe Joana, de Reinaldo Pimenta, que afirma que “os criados, oficiais etc. que não moravam no palácio real eram alimentados ‘com as rações prescritas da Cozinha Del Rei e a porção de cada um variava conforme a importância do serviço prestado. E assim havia gente de tigela inteira e gente de meia tigela”. A versão é a mesma apontada pelo professor de língua portuguesa Sérgio Nogueira, formado em letras pela UFRGS e mestre pela PUC-Rio: a expressão veio da época da monarquia portuguesa.

Rainer Sousa, graduado em História, aponta que a origem estaria em Portugal na Idade Média, pois teria sido neste momento que “a gíria de sentido fortemente depreciativo foi concebida”. “Todo aquele filho de nobre que não herdava terras [ou seja, não era o primogênito] era conhecido como ‘fidalgo de meia-tigela’. Isso porque ele também era proibido de participar de um importante banquete, ritual onde se fazia a quebra de todos os pratos, louças e tigelas que serviam as refeições. Por fim, sobrava ao pobre filho de nobre os restos de sua posição social, ou seja, as meias-tigelas.”

Alternativa: não adequado, ruim, fraco, insatisfatório


“Macumbeiro” | “Chuta que é Macumba”

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa afirma que a palavra “macumbeiro” é um substantivo masculino para designar um músico tocador de macumba (antigo instrumento de percussão) e também denominar um “chefe de terreiro de macumba”. A palavra é usada também como adjetivo para frequentadores ou praticantes assíduos de “macumba”.

O termo “macumba”, de onde se deriva “macumbeiro”, apresenta origem controversa, conforme o Houaiss. O Dicionário de Cultos Afro-brasileiros sugere que a palavra, advinda do quimbundo (língua africana falada no noroeste de Angola), tem sentido de ‘o que assusta’ ou ‘sortilégio’. Já o Dicionário Banto do Brasil propõe que o termo apresenta sentido de ‘prodígio’. Por sua vez, Antenor Nascentes e Jacques Raymundo ligam o elemento no sentido de ‘cadeado’ pelas “cerimônias de fechamento de corpos” que acontecem entre os rituais desse culto.

Segundo o professor de História e doutorando em ciências sociais Jorge Amilcar de Castro, a palavra “macumbeiro” nasce da identidade das pessoas. Para ele, nos últimos anos essa expressão é acionada como adjetivo negativo, como referência pejorativa às religiões de matriz africana. Contudo, entre as pessoas dessas religiões, existe uma permissividade para utilizá-la.

No artigo científico apresentado no segundo simpósio de pesquisa da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o professor de História e doutorando em História Social da África Marcos Paulo Amorim mostra que as religiões afro-brasileiras passaram por um longo caminho pela ilegalidade antes de serem reconhecidas, oficialmente, como práticas religiosas. Uma das primeiras manifestações religiosas nesse sentido foi o candomblé, que sobreviveu nos grandes latifúndios do interior do Brasil e se adaptou em disfarces de uma aparente “cristianização”.

Nesse sentido, João Ferreira Dias, doutorado em Estudos Africanos pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), e Mestre em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, analisa como essa perseguição religiosa ainda se faz atual. 

Dias revela, em seu artigo, que a expressão “chuta que é macumba” despontou no ano próximo à criação do jornal O Alabama. Seu primeiro número distribuído foi no dia 21 de dezembro de 1863, na cidade de Salvador, capital da Província da Bahia. O termo surgiu para incitar os populares a “pontapearem qualquer oferenda ritual encontrada em elementos naturais ou urbanos considerados hierofanias, em particular as encruzilhadas”, afirma o pesquisador.

Alternativa: praticante de (coloque aqui a religião afro-brasileira). Para a expressão “chuta que é macumba”: deixa disso, se afasta

Editado por: Chico Marés

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