terça-feira, 6 de dezembro de 2022

"Cada povo tem o seu Cervantes ou Shakespeare, a América Latina também tem de ter o seu. Mas qual?" - Diário de Notícias - Dicionário

Quando se pensa num tradutor, normalmente imagina-se um indivíduo solitário e introvertido, com um olho sempre em livros de línguas estrangeiras e o outro em dicionários. Artur Guerra e Cristina Rodriguez são um casal de tradutores literários que mantém a tarefa solitária do tradutor sem se sentirem sozinhos, tal como eles dizem: "Uma característica nossa é que trabalhamos muito solitariamente. Mas temo-nos um ao outro, o que é bom. A tradução literária é uma vocação. Nem toda a gente gosta de estar fechada em casa a trabalhar o dia todo sem conversar com ninguém. Mas é uma paixão. A investigação é gira. O andar de roda na investigação das palavras, o não perceber a frase e tentar procurá-la, o não perceber uma palavra. Dá pica uma pessoa estar à descoberta do sentido das coisas ou ver o que é que o autor ali quis dizer e que nós não estamos a conseguir perceber. Às vezes há livros muito mais difíceis em que a frase é de tal maneira imbricada que temos de a desfazer."

Conheceram-se há mais de 30 anos, quando o Círculo de Leitores, onde Cristina era editora, pediu a Artur para traduzir para espanhol a Lexicoteca - Moderna Enciclopédia Universal. Num desses dias de trabalho na editora, Cristina precisava da tradução de um livro de filosofia e chamou Artur. "A partir daí gostámos um do outro. Foi então que pusemos a questão: por que não trabalharmos juntos? E continuámos a fazê-lo até hoje", diz Artur, enquanto sorri para Cristina, mãe do seu filho João, numa das muitas divisões da sua casa que eles utilizam para o trabalho. Neste caso, uma garagem convertida num escritório, de frente para a Serra da Arrábida, onde centenas de livros enchem as paredes formando a sua própria serra, muitos deles o resultado do trabalho solitário em que sempre se tiveram o um ao outro.

O primeiro livro que traduziram juntos foi Filomeno, do espanhol Gonzalo Torrente Ballester, em 1990, e agora estão a traduzir História de um Deicídio, a tese de doutoramento do Prémio Nobel peruano Mario Vargas Llosa, na qual analisa em profundidade a obra de Gabriel García Márquez. Não houve oportunidade para perguntar ao casal que outros livros de literatura latino-americana traduziram porque ambos já estavam a listá-los a sério, receosos de que pudessem deixar passar algum: "Nós já traduzimos talvez uma dúzia ou mais de autores latino-americanos. Traduzimos dez livros do Roberto Bolaño, dez do Vargas Llosa, cinco do García Márquez; também traduzimos do Jorge Luis Borges, do Enrique Acevedo, do Jorge Edwards e da Laura Esquivel. De facto, são muitos". Autores chileno, peruano, colombiano, argentino, cubano e de novo chileno.

A literatura latino-americana é vasta embora relativamente recente na sua tradição. Os inícios de uma identidade literária latino-americana podem ser traçados até ao século XVII com a publicação do livro histórico-literário Comentarios Reales de los Incas (Os Comentários Reais dos Incas), escrito pelo "Inca" Garcilaso de la Vega, um mestiço nascido na capital do conquistado império inca. Desde então, nomes como Sor Juana Inés de la Cruz, Andrés Bello, Esteban Echevarría e Rubén Darío começaram a surgir, o que ajudaria gradualmente a formar uma identidade literária latino-americana que não só se refere à sua localização geográfica, à sua cultura partilhada ou às suas respetivas línguas, mas também a uma literatura que já alcança a comunicação entre os vários escritores e as suas obras; um sistema literário. Isto é demonstrado pelo movimento literário dos anos 60 e 70 que irrompeu de forma explosiva na literatura mundial. Fala-se, é evidente, do "boom" latino-americano, movimento que finalmente iria impor a sua qualidade e capacidade literária à literatura universal com livros como Rayuela do argentino Julio Cortázar, A Cidade e os Cães de Vargas Llosa e Cem Anos de Solidão de García Márquez.

Artur e Cristina partilham a sua visão sobre a tradição latino-americana e os seus autores. "O realismo mágico de García Márquez é fenomenal, é uma coisa que nos prende", diz Artur. E continua Cristina: "E há uma tradição. Dá-me a sensação de que os autores latino-americanos conseguem fundar uma tradição em que se mistura a tradição de cada um deles, dos seus povos. Sendo ocidente eles têm de criar a sua própria voz. Nós temos os gregos todos para trás, temos os clássicos todos para trás, temos isto e temos aquilo. Eles também. Mas para além disso, aquilo que García Márquez ou Vargas Llosa ou Bolaño fazem é ir buscar a sua própria voz. Mesmo baseados - porque a literatura não faz nada de novo, portanto vai sempre acrescentar mais qualquer coisa, mas tem o lastre todo por trás - eles acrescentam a sua tradição. Isto é o que me dá sempre a sensação. E, portanto, começa com García Márquez. Dá-me ideia que começará por aí. Ele é o primeiro que vai buscar povoações, histórias do realismo mágico. Essa é a voz do povo, do país, e ao mesmo tempo universal como todas as grandes literaturas. Eles vão passando a palavra com todo o peso da tradição, mas demarcando-se. Não digo que eles não tenham lido os autores clássicos, claro que leram, é óbvio que sim, mas depois foram passando a palavra para as suas raízes, para as suas identidades; o que todos os povos fazem. Cada povo tem o seu Cervantes ou Shakespeare ou Goethe, mas essa voz antes não existia na América do Sul portanto eles também têm de ter o seu Shakespeare, o seu Dante..." A isto seguiu a perigosa questão de quem é o Shakespeare ou Dante da América Latina. Cristina e Artur começaram a rir e, assustados, responderam: "Ah, isso aí já é terrorismo. Se dissermos que é o Jorge Luis Borges há uma série de gente que diz "não, nem pensar!" outros diriam que é o García Márquez. Tem de passar um bocadinho mais de tempo para se poder falar sobre isso."

Não querendo cometer o "ato de terrorismo" de nomear um autor latino-americano como o Shakespeare ou Dante da tradição da região, pergunto-lhes simplesmente qual é o seu autor preferido. O casal não pensou duas vezes antes de responder em uníssono e a acenar com a cabeça: "Bolaño. É o Bolaño. E não é por termos o prémio por causa dele, não. Ele é sempre uma maravilha de traduzir". O que não foi difícil de adivinhar, pois uma das primeiras coisas que fizeram no início da entrevista foi tirar da sua estante o romance póstumo do escritor chileno: 2666.

Antes de terminar o seu último romance, Roberto Bolaño, autor do romance Os Detetives Selvagens (1998) e do livro de contos Chamadas Telefónicas (1997), que sentia a morte a pairar sobre ele, decidiu, por razões financeiras, tentar salvar os seus filhos da pobreza, deixando escrito o seu desejo de publicar a obra em cinco livros diferentes, cada parte publicada com um ano de diferença.

Bolaño morreu em 2003, e a sua obra de mais de 1000 páginas foi publicada na totalidade um ano mais tarde por decisão dos seus filhos e editores. Em 2666, a cidade de Santa Teresa, uma cidade ficcionada representando a cidade de Juárez, no México, serve de ponto de convergência para os vários protagonistas das cinco partes: A Parte dos críticos; A parte do Amalfitano; A parte do Fate; A parte dos crimes; e A parte de Archimboldi; cada uma das quais pode ser lida independentemente da outra, cabe ao leitor decidir se quer ler toda a obra ou apenas as suas partes. Cada parte do romance tem a cidade de Santa Teresa como centro físico, e segundo Bolaño, existe um centro "escondido" dentro da obra. O que é esse centro não se sabe, mas poderá ser encontrado na história dos críticos literários que vão em busca do escritor desaparecido Benno von Archimboldi, na história de Amalfitano, um professor chileno que viaja para o México com a sua filha para dar aulas na universidade, na história de Fate, um jornalista americano que se desloca a Santa Teresa para relatar um combate de boxe, na história dos femicídios de Santa Teresa, e na história do aclamado e misterioso escritor alemão, Benno von Archimboldi.

Artur e Cristina, quando trabalham na tradução do livro, perdem o maior direito do leitor: o direito de o deixar de ser. Isto apresenta-se tanto como uma maldição como uma bênção, especialmente quando se trata de 2666. A tradução deste livro valeu ao casal o "Prémio de Literatura Casa da América Latina" em 2011, mas não sem os seus sacrifícios.

"O Bolaño foi bastante difícil ao princípio. O 2666 foi muito difícil. Mas por outro lado também era uma escrita muito escorreita. Eu traduzi um capítulo (tivemos de dividir por capítulos porque era muito urgente) que era só mortes. Agora imagine o que é traduzir aquilo. Eu estava no anexo e a Cristina aqui, de vez em quando eu ia dar uma volta porque não conseguia, não conseguia. Aquilo é muito forte. Emocionalmente é muito forte", diz Artur, referindo-se à parte dos crimes, onde Bolaño descreve forensicamente a morte de mais de 100 mulheres assassinadas em Santa Teresa. Cristina continuou a falar mais sobre o que o casal sentiu ao traduzir esta parte: "Eu acho que até dormimos mal após algumas descrições. Então, quando ele [Bolaño] metia crianças nós ficávamos ainda mais sensíveis. Crianças torturadas e violadas com toda a descrição. Uma menina de oito anos que foi torturada e violada de tal maneira que acabou por morrer do coração com a aflição daquilo que lhe fizeram. Mas aquilo tudo com pormenor e nós a vivenciar aquilo tudo, meu deus. Eu acho que até dormimos mal aqueles dias porque não conseguíamos aguentar a angústia. Ainda por cima Bolaño foi buscar histórias verídicas aos registos da polícia, portanto não era só ficção, era realidade. Isso mexeu connosco. Estar a traduzir aquilo foi o mais angustiante. Mas também descobrimos realidades que não sabíamos que existiam: Aquela zona da fronteira do México com os Estados Unidos com as maquiladoras e aquelas mortes e perseguições e aquilo tudo. Eu não sabia que aquelas fábricas existiam ali na fronteira para pagar pessimamente às trabalhadoras que depois eram raptadas e ninguém se queixava porque a família estava em cascos de rolha. Estas são também realidades e nós não sabíamos."

A obra póstuma de Roberto Bolaño prende o leitor pela garganta para lhe mostrar as várias crueldades que o homem é capaz de cometer, mas também é capaz de o levar pela mão aos cantos mais piedosos e delicados da humanidade. Talvez o centro "escondido" de 2666 seja o impulso que impele o homem para a crueldade ou a benevolência. Em qualquer caso, é possível sentir que em 2666 a humanidade se abre para o leitor da mesma forma que o próprio abre um livro.

Então, para além da experiência angustiante de traduzir um episódio em que a crueldade é o único protagonista do momento, como é que o resto do livro se apresenta para os tradutores? "A experiência foi muito profunda. Identificamo-nos muito com o autor", diz Artur. E continua Cristina: "É como se fosse uma sinfonia para mim, (acho que já alguém disse isto, não estou a dizer novidade nenhuma) ele [Bolaño] vai-nos dando partituras de todos os instrumentos e depois no fim apresenta-nos a sinfonia completa. Os planos são tantos, eu não sei se era porque ele gostava muito de jogos de tabuleiro de guerra em que é preciso estabelecer as estratégias de guerra todas, a forma de ele pensar é tal, que não sei como é que ele conseguiu conjugar tudo aquilo porque as coisas parecem não estar ligadas no princípio e depois vão surgindo aqui vão surgindo ali e quando chega o fim é aquele estrondo final de dizer "eh pá, por isso que apareceu aquele, é por isso que aconteceu o outro". É um efeito de surpresa mirabolante."

No final da entrevista, o casal fala sobre os problemas que o tradutor tem de enfrentar. Entre eles, a realidade económica. Diz Artur: "As finanças nunca reconheceram a legislação europeia sobre a tradução. Tivemos sempre de pagar IVA e IRS máximo. Agora algumas editoras começam a pagar-nos como se a tradução fosse uma atividade literária. Mas nós recebemos a mesma coisa que há 20 anos." Outro problema que enfrentam é a ideia oposta, que a tradução não é de todo uma atividade literária: "Nas finanças chegaram a dizer ao Artur 'como é que vocês podem ter direitos se não são escritores?' Ao que Artur disse 'somos coautores' e eles responderam 'não receberam nenhum Nobel, pois não? Portanto, se não receberam nenhum Nobel, não são criadores'", lembra Cristina, rindo desse absurdo.

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