quinta-feira, 22 de abril de 2021

Gonçalo M. Tavares: “Textos que se podem ver” - Visão - Dicionário

Jornal de Letras: Como aconteceram estes dois textos teatrais, O Dicionário da Fé e Porta?
Gonçalo M. Tavares: São diferentes. Bucchieri queria pensar nos limites, na fé no teatro. e chegamos à ideia de dicionário precisamente como qualquer coisa que é pouco teatralizável. São dezenas de entradas, umas que vêm do Atlas, algumas histórias do Senhor Brecht, e de outros livros meus, mas com textos novos não editados. E a ideia também foi que as entradas fossem completamente livres e diferentes, ensaísticas, versos, micro-histórias.

O que lhe interessa na forma do dicionário?
O alfabeto também é, de alguma maneira, uma medida de tempo. E interessa-me refletir sobre um tempo que vem do alfabeto e não do cronómetro, do tempo real. Por outro lado, pondo histórias e não ensaios concretos, abre-se um leque enorme de entradas no dicionário. A fé é um tema gigantesco, que tem a ver com a crença, mas também com o oposto, a descrença, o pessimismo, a racionalidade. Se começarmos a ver as palavras vizinhas e inimigas, de repente, está lá tudo. Qualquer palavra pode ser um atrator do mundo. Estou com muita curiosidade de ver como os atores e o encenador vão conseguir pôr em movimento algo que é do mundo da linguagem ou como folhear um dicionário em palco, andar à procura de uma palavra com a mão.

Escreveu tendo em conta o palco?
Neste caso, a ideia era mesmo escrever sem pensar que era para teatro. Já o texto que fiz para o Victor Hugo Pontes, é muito físico. Ou seja, se for evaporado aparecem ações. Pensei de forma completamente diferente, até porque se tratava de dança e, no limite, até podia não estar presente.

Mas está.
Sim, foi essa a decisão, mas a ideia seria que as palavras fossem ações, quase no sentido da linguagem performativa, de como fazer coisas com as palavras. É uma lógica completamente diferente de algumas entradas do Dicionário da Fé, que são pura reflexão, da ordem do pensamento e não da ação. A Porta, para O Bando, foi talvez uma coisa intermédia.

De que maneira?
No Dicionário da Fé estava completamente centrado na linguagem. Em Os Três Irmãos, na questão física, na ação, tudo remete para o movimento. O meu espaço é muito visual e aparece a geometria, que está presente em muitas coisas minhas.

Como?
O pai e a mãe são representados por duas circunferências e, ao fazê-lo, estamos a torná-las humanas, afetivas, ou trágicas. E no caso de O Bando, de alguma maneira pensou-se não necessariamente nas questões das migrações de uma forma explícita, mas no estar em caminhada, fora de casa. Existe a questão da fuga e da velocidade da fuga, o homem que desaparece mais rápido e deixa os filhos e a mulher com a sua caminhada pequena. Há uma questão teatral pragmática, um objeto cénico importante que é a porta, fechada ou aberta, coisas muito fortes a vários níveis. E, por outro lado, a fechadura, a chave e o lado onde está, a definir o exterior e o interior. E, claro, também a questão da linguagem. A mulher leva uma espécie de herança do pai que é uma frase: nunca percas a impaciência.

Os seus textos são, de resto, muitas vezes postos em cena, tanto cá como noutros países.
Agora, em Espanha, por exemplo, estão a preparar uma ópera a partir do Short Movies. É engraçado. Alguns dos meus textos são realmente muito performativos, no sentido em que se podem ver. Penso muito espacialmente, mesmo quando conto histórias. Muitos dos meus livros têm, de facto, dado origem a coisas fora da literatura. Transitam por várias fronteiras. E essa é uma das coisas mais interessantes e até recompensadoras, para mim, ver que saem do âmbito do leitor e entram no domínio da dança, do teatro, da performance, do vídeo. Há sempre alguém a fazer qualquer coisa sobre os meus textos, uma espécie de leitores-criadores. É uma resposta criativa a uma criação. O livro mais surpreendente, nesse sentido, é o Atlas do Corpo e da Imaginação.

Porquê?
Porque é incrível a quantidade de pessoas da dança, do teatro, da arquitetura, que propõem trabalhos a partir dos seus fragmentos.
Também tem trabalhado diretamente com artistas visuais, arquitetos, no coletivo Os Espacialistas.
A arte contemporânea é outro mundo essencial para mim. Com Os Espacialistas, tenho feito trabalhos em conjunto, juntando texto e fotografia. Eu introduzo a questão da reflexão e da linguagem e cruzo-o com as imagens deles. Vamos ter agora uma nova exposição na galeria Carlos Carvalho.

O que vão mostrar?
Precisamente uma mistura estranha entre texto e imagem, que tem que ver com os imaginários da geometria, do corpo, em diferentes situações.

A partir do seu Atlas?
Também. Mas esta exposição vai ter textos novos em relação com as imagens dos Espacialistas. De resto, usei muitas fotografias deles no Atlas.

Está, por outro lado, a fazer um Dicionário de Artistas, no CCB digital. Como surgiu esse projeto?
Já tinha alguns textos sobre artistas contemporâneos e houve um interesse comum, com o CCB, de olhar de forma distinta para o universo da arte contemporânea.

Em que sentido?
Não se trata de alguém que analisa as obras. O meu instinto é perceber o que colocam em movimento. São textos de associações e puro raciocínio a partir de artistas contemporâneos vivos, de uma obra de que gosto ou que reconheço estimulante.

Uma escolha sempre pessoal?
Claro. E são dezenas de artistas. Dão-me um conjunto de estímulos muito fortes. O belga Francis Alÿs, por exemplo, é um criador tão importante, para mim, como um autor de literatura. Nesse sentido, não distingo as artes, nem sequer a ciência. A cada descoberta científica, a literatura move-se como a cada movimento da arte contemporânea. Está misturada com todos os mundos.

Do ponto de vista da escrita, também tem sido estimulante?
São textos muito rápidos, diferentes, por exemplo, da escrita do Diário da Peste. E é um tom da linguagem que me interessa. Uma coisa que me deixa triste é ver que as pessoas se afastam da arte contemporânea, que tem coisas absolutamente extraordinárias e muitas vezes é vista como banal. As entradas do meu dicionário evidentemente não pretendem esclarecer nada, são do mundo literário, fazem o seu percurso autónomo, mas espero que ajudem a chamar a atenção para esses artistas e para a arte contemporânea, que de resto está presente em muitos dos meus livros.

Está a pensar publicar o Dicionário de Artistas em livro?
O livro seria um belo objeto final. Continua a ser uma grande máquina, antiga e muito moderna. A internet tem a potencialidade muito forte do link, mas o livro tem uma potência física de que continuo a gostar muito.

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