segunda-feira, 19 de abril de 2021

O país que não nos merece e o cavalo que falava inglês Luís Castro Mendes - Diário de Notícias - Lisboa - inglês

País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
- Não, não é para mim este país!
Mas quem é que baquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?

Alexandre O'Neill

Será difícil para as gerações atuais (às quais será também necessário explicar que o Bac Stick era um desodorizante popular nos anos 60 do século passado) entender o sentimento de desdenhosa superioridade que qualquer português que tivesse estudado no estrangeiro passava a sentir, nesses anos longínquos do Bac Stick, pelos seus compatriotas menos viajados. Neste tempo dos Erasmus, dos doutoramentos e post-docs nas universidades estrangeiras, das carreiras científicas que se fazem pelo mundo fora, será difícil a um jovem entender aquele sentimento de distinção superior que autorizava qualquer um que tivesse passado algum tempo a estudar em Oxford ou no Minnesota a chamar "indígenas" aos seus concidadãos.

A distinção procura-se pelos mais diversos e criativos meios, já o sabia Thackeray (The Book of Snobs) antes mesmo de Bourdieu (La Distinction). Destacar-se da multidão morena e mal vestida que enchia o Chiado era sem dúvida o propósito essencial dos chamados Vencidos da Vida, o que me leva, apesar do meu amor incondicional pela obra de Eça de Queirós (do mesmo modo que ele confessava amar a obra de Victor Hugo comme une brute), a reconhecer que Fernando Pessoa tinha razão quando diagnosticava o provincianismo inerente a esta atitude de desdém pela choldra, da parte de Eça e dos seus amigos.

Não que a choldra não mereça ser zurzida e reconheçamos que nem Pessoa nem O'Neill foram meigos com ela. Mas transparece nesta geração de 1870, que anacronicamente nos continua a inspirar, uma atitude perigosamente afim do deleite de Dâmaso Salcede com aquela que era verdadeiramente a capital cultural de século XIX (Walter Benjamin): eu quando posso pilho-me em Paris...

Paris, entretanto, passou de moda e o snobismo de classe dos ingleses (que para Adorno era a maior relíquia arqueológica do feudalismo na Europa), troçado por Oscar Wilde e Bernard Shaw, passou a ser o maior chamariz para os nossos burgueses ávidos de distinção. Dâmaso Salcede deixa de frequentar o Hotel de la Paix, troca os pobres Porfírios por Carnaby Street e descobre-se espiritualmente no meio das regatas de Oxford.

Passei a maior parte da minha vida fora de Portugal. É verdade que não estudei em nenhuma universidade estrangeira de prestígio (meus filhos sim, mas para a geração deles isso é banal). A Faculdade de Direito de Lisboa é um modesto currículo escolar, certamente, aliás digam-me alguém importante na vida pública do país que tenha passado por lá? Mas tive oportunidade de viver em diferentes países e não entendo por que razão esta minha experiência de vida não me dá um centésimo do prestígio cultural de quem estudou em Oxford ou no Minnesota e pode passar o resto da vida a rir-se dos "indígenas".

Todos somos snobs, e eu também. O que me sucede é que, vítima da minha distração e da minha preguiça, nunca consegui ser um snob competente. Falo melhor francês do que inglês, o que me torna um pária no mundo moderno. Nunca vivi no paraíso (Oxford) nem nos seus arredores (Minnesota), tendo passado antes por lugares pouco qualificados como a França, esse poço de defeitos execrado pelas nossas elites. Não sou liberal, sou socialista, o que parece que já não se usa (a não ser, estranhamente, nas mesas de voto). Sou um representante típico deste país que não consegue ser anglófono, liberal, capitalista, ironicamente desdenhoso (a não ser de si próprio, porque dos ingleses o que nunca conseguimos copiar foi a mínima self-deprecation), cético e cínico até à medula, civilizado, enfim.

Para o provinciano a civilização é o exterior de si mesmo. Mas é nesse exterior que projetamos os nossos desejos. Os meus são mais modestos. Nunca me senti tão grande como nesta canção de Chico Buarque, que dedico aos meus contemporâneos irredutivelmente anglo-saxónicos:

Agora eu era o herói
e o meu cavalo só falava inglês

(Chico Buarque, João e Maria)

Diplomata e escritor

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