domingo, 27 de junho de 2021

Pequeno dicionário rancoroso - Jornal O Globo - Dicionário


Palavras são volúveis, como pluma ao vento. Mudam de tom e de temperamento.

Até outro dia mesmo, o Houaiss garantia que neutro era “o que não se posiciona, que se abstém de tomar partido; que avalia com imparcialidade”. Ganhou nova acepção (“fascista por conveniência e covardia”) por obra e graça do influenciador profissional Felipe Neto.

Fascista era o “partidário ou simpatizante do fascismo”. Hoje, é qualquer um que discorde do dogma de que não se chega ao paraíso e à democracia senão pelo PT.

Democracia era o governo que acata a vontade da maioria, respeitando os direitos e a livre expressão das minorias. Virou o regime em que a maioria escolhe quem vai trair suas esperanças, restringir seus direitos e impor a vontade de uma minoria menor ainda.

Minoria era o “subgrupo que, em razão de características étnicas, religiosas, ou de língua, costumes, nacionalidade etc., não tem os mesmos direitos e/ou as mesmas oportunidades que o grupo majoritário, ou é alvo de discriminação ou preconceito”. Passou a ser um equivalente ao escravo cuja meta é se tornar senhor de escravos um dia.

Um dia, convulsão significou “grande agitação, alvoroço, bulício; revolta social de grande impacto; cataclismo, revolução”. Está prestes a virar eufemismo para “pancadaria generalizada a fim de garantir que o resultado das urnas só seja respeitado caso se mostre favorável ao governante de turno”.

Turno era cada etapa de uma votação. No primeiro, o eleitor indicaria o candidato de sua preferência. Se nenhum alcançasse a maioria absoluta dos votos válidos (sem levar em conta os nulos ou em branco), um segundo turno seria realizado, com os dois concorrentes mais votados. Desde 2018, eleição em dois turnos designa um plebiscito em duas rodadas, disputado entre um “ele não” e um “ele nunca”.

Voto em branco era aquele em que o eleitor não manifestava preferência por nenhum dos candidatos. A antropóloga Debora Diniz ressignificou o conceito: “Voto em branco é voto no Bolsonaro”. O TSE ainda não se manifestou sobre essa alteração na forma de computar os votos.

Canalha: “infame, vil, abjeto; velhaco”. Agora, “meio de comunicação que não atende aos interesses do presidente da República”. O mesmo que de oposição e/ou isento.

Isento tinha tudo para continuar sendo algo saudável, mas a humorista e patrulhadora social Samantha Schmütz já informou que é “muito louco isso de lutar pelo direito de ser isento”. Ou seja, de ser “desobrigado; livre, desembaraçado, limpo de culpa; independente; que julga sem parcialidade, sem paixão”. Usado no aumentativo (isentão), designa quem acredita numa terceira via.

Tem havido um esforço insano para transformar terceira via em sinônimo de utopia. Porque é a corrente que propõe um mundo não binário, distante do fascismo e da ditadura das minorias. Que se vale do diálogo, não do “cala a boca” (expressão dada como morta pela ministra Cármen Lúcia, mas que se mostrou vivíssima outro dia). E que entende a alternância de poder como uma das maiores virtudes da democracia.

Eduardo Affonso - assinatura

Por Eduardo Affonso

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