terça-feira, 1 de junho de 2021

Post-Brexit Punk. O novo movimento inglês que está a conquistar o mundo - Jornal i - inglês

O que é uma cena musical? É uma ideia que provavelmente nos remete para Seattle nos anos 1990, com o grunge dos Nirvana, Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chain, ou para os grupos de Manchester que, nos finais de 1980, marcaram a época do Madchester e revolucionaram a cultura de dança – grupos como os Stone Roses, Happy Mondays ou os Charlatans. E até em Portugal, enquanto lemos este artigo, há um grupo de artistas empenhados em reconstruir a cultura da música tradicional com elementos contemporâneos.

O que partilham estas três cenas em comum? Origens geográficas semelhantes, referências comuns e um conjunto de características que faz com que se encaixem num determinado estilo musical.

Contudo, atualmente, é cada vez mais complicado encontrar grupos que cruzem exatamente todos estes elementos. Mesmo que coincidam na geografia, com a liberdade que a internet oferece, os interesses de cada individuo dependem exclusivamente da sua vontade de navegar na world wide web e descobrir artistas novos.

Porque é que tantos meios de comunicação insistem, então, em catalogar a nova geração de bandas de rock e punk do Reino Unido, onde estão incluídos grupos que lançaram álbuns aclamados no primeiro semestre de 2021, como os black midi, que na passada sexta-feira lançaram o seu segundo disco, Cavalcade, Squid, Black Country, New Road, Dry Cleaning, Shame, Goat Girl, mas também outras bandas como Porridge Radio, Courting, Yard Act, The Cool Greenhouse, Home Counties, Billy Nomates, Legss, ou Working Men’s Club, como “Post-Brexit Punk”?

“Não sei se esse é um nome que encaixa perfeitamente”, diz-nos o baterista dos Black Country, New Road, Charlie Wayne. “Mas uma coisa é certa, existe definitivamente uma nova cena musical forte e vibrante na Inglaterra. Com muitos artistas como os Squid, Black Midi e os Famous, que partilham um ADN musical semelhante”.

Um novo som? Em termos sonoros, estes grupos possuem óbvias influências de post-punk, popularizado por bandas como os Joy Division, The Cure ou The Fall, nos anos 1980, mas também de post-rock, estilo musical onde os grupos usam o rock de forma mais orquestral com as músicas construídas em crescendos que culminam em grandes êxtases instrumentais, e os vocalistas possuem uma forma muito específica de cantar (se é que se pode chamar de cantar...), mais próximo do spoken word – o jornalista Michael Hann, num artigo do Guardian, de 2019, argumentou que o termo mais correto é Sprechgesang, que significa, literalmente, “canção falada”, e é uma técnica vocal expressionista de declamação que paira entre a fala e o canto.

“O nome de estilos musicais pode ser pateta, irritante e redutor”, escreve o jornalista americano Matthew Perpetua na NPR. Ainda assim, reconhece que essa é a forma mais prática de descrever a nova onda de jovens bandas que está a surgir do Reino Unido e Irlanda.

O baterista dos Black Country, New Road tem dúvidas se o termo “post-punk” é correto para designar o tipo de música que a sua banda faz. 

For the First Time, disco de estreia do septeto, lançado em fevereiro, é uma mistura desconcertante de estilos, que inclui os acima referidos post-punk e post-rock, mas também free-jazz, math-rock e klezmer, um estilo de música tradicional na comunidade judaica.
“Acho que é estranho tentarem colocar a nossa música num estilo musical que seja algo mais específico que o rock”, diz o baterista, especificando que na criação do disco de estreia, a banda não procurou focar-se em nenhum género específico de música.

“É difícil dizer que exista apenas uma influência na nossa música. Somos sete membros na banda e, apesar de termos gostos mais ou menos parecidos, existe sempre muita coisa que um membro da banda possa adorar e outro nunca tenha ouvido falar. Ainda para mais, tendo em conta que este é o nosso primeiro disco, existiu uma grande variedade de estilos que entraram numa espécie de ‘melting pot’ enquanto estávamos a compor o álbum. Não é que as músicas não revelem as suas referências”, confessa Wayne. “É apenas uma mistura estranha”.

Também o vocalista dos Shame, Charlie Steen, esteve à conversa com o i, via zoom. Horas antes de um concerto em Manchester de apresentação do seu segundo disco, Drunk Pink Tank, editado em janeiro, dizia-nos: “Naturalmente, estamos todos a par uns dos outros”. E o facto de existir esta cena a proliferar “com tanta boa música” motiva os músicos “a tentar criar a melhor música possível”.

“Não acho que exista uma espécie de competitividade. Existe uma grande camaradagem na cena”, explica o vocalista, que, enquanto apresentava com a sua banda o aclamado álbum de estreia, Songs of Praise, que valeu aos Shame uma tour massiva internacional que se prolongou por três anos, aproveitava para divulgar e publicitar a música dos black midi em cima de palco. “É muito excitante existir tanta boa música e tu não queres ficar para trás, queres continuar na “corrida” e levar-te ao limite. As bandas estão mais preocupadas em estabelecer o seu próprio som. Acredito que os músicos estão mais interessados em criar novos sons e experimentar novas abordagens para não replicarem tudo aquilo que já foi feito no passado enquanto criam uma voz e um som que se destaque”.

O som, o som, o som… Apesar de existirem os pontos em comum, cada grupo criou a sua própria identidade e é muito fácil distingui-los. Os black midi impressionam pela forma como usam estruturam complexas nas suas músicas, com influências de jazz ou rock progressivo, e põem-nas em prática de uma forma visceral e pesada; os Shame são reconhecidos pelo som cru e concertos intensos e físicos; os Dry Cleaning são mais focados na performance e na forma como as letras-poemas são declamadas.

“Não concordo que a nossa banda soe de todo a grupos como os Joy Division ou os Interpol, apesar de existirem algumas partes que se possam intercalar”, afirma o baterista dos Black Country, New Road, questionado se as gerações atuais de bandas inglesas soam como os grupos que fundaram o post-punk. “Não sei se incorporamos estes estilos diferentes para nos destacarmos, acho que é algo que surge naturalmente na nossa música”, argumenta.

Música política ou apolítica A atual geração de punk rockers ingleses começou por chamar a atenção por intermédio de um grupo de Bristol chamado IDLES. Apesar de terem criado um burburinho com o seu disco Brutalism, de 2016, que continha o single ‘Mother’, foi com Joy as an Act of Resistance, lançado em 2018, que o grupo realmente rebentou e recebeu uma grande aclamação pela forma como, apesar do som musculado e agressivo, abordava temas como a masculinidade tóxica ou os problemas que o Brexit trouxe para a sociedade britânica, uma abordagem que lhes valeu uma nomeação para o Mercury Prize, de melhor álbum britânico ou irlandês do ano.

Como os IDLES, existem outros grupos que se atiram de dentes afiados ao governo britânico, como os Fat White Family ou os Sleaford Mods. Porém, as bandas mais jovens apresentam uma relação diferente com a música política.

Questionado se o termo “Post-Brexit Punk” descreve a sua banda de forma correta, dados os contornos políticos desta questão, Charlie Steen diz que “tudo depende do contexto”.

“Neste momento no Reino Unido existem muitos problemas políticos, sociais e económicos que, inconscientemente, acabam por se refletir nas pessoas, nos seus maneirismos, na forma como se comportam e naquilo que querem falar”, explica o vocalista. “Ninguém no mundo da música tem muito dinheiro e, por isso, tem de trabalhar no duro para sobreviver”.

O mais recente disco de Shame, Drunk Tank Pink, não é propriamente um álbum político, é um álbum de introspeção escrito após três anos intensos de tour por todo o mundo. Nele, Steen reflete sobre o facto de estar de volta a casa sozinho.

Charlie Wayne considera o termo “Post-Brexit Punk” “engraçado” uma vez que “implica uma carga política que não é necessariamente representada na sua música”. “Como banda, temos sentimentos muito fortes em relação ao Brexit, acredito que na sua trajetória atual vai ser devastadora para muitos músicos promissores”, antevê o baterista.

Então onde é que entra a carga política nestas músicas? Apesar das letras não serem tão orelhudas como as dos eternos Sex Pistols – com faixas como ‘God Save The Queen’ ou ‘Anarchy in the UK’, existem bandas como os Dry Cleaning, onde a letrista Florence Shaw, ainda que de forma mais abstrata, retrata como o Brexit pode influenciar as relações românticas: “Long and lean and young and lovely / You just want to be liked / I like you, stay / It’s Europe”.

Muita desta sensação de desilusão para com o seu governo e país é transmitida nos instrumentais, que espalham o caos, claustrofobia e ansiedade de viver em plena crise política, uma opinião que é aceite tanto por Steen como por Wayne, embora o último continue a “afastar-se desta narrativa”. 

“Suponho que é uma forma de ver as coisas. No entanto, é fácil desenhar essa narrativa porque a música estava a ser escrita enquanto o Brexit se estava a desenrolar. Tanto quanto sei, esta questão não se encontrava nas nossas mentes enquanto escrevíamos o disco. Obviamente, não estamos satisfeitos com o Brexit, mas não foi o nosso foco neste álbum”.
Mas existe mundo fora das letras. Os grupos preferem tomar ações pelas próprias mãos. Os Shame neste momento estão a preparar uma série de concertos para ajudar salas de concertos independentes a lidar com as perdas provocadas pela pandemia. E ajudaram, por exemplo, a divulgar uma campanha para ajudar o banco alimentar da cidade de Heywood, perto de Manchester, ou tentam aumentar a conscientização através da internet com posts nas redes sociais, mesmo que sejam através de momentos humor com a partilha de memes.

A sala de espetáculos que ajudou a criar uma cena Apesar de existirem estas divergências em termos estilísticos nas bandas, existe algo que deu força às bandas que fazem parte desta cena musical e que ajudou a criar um sentimento de comunidade e camaradagem entre os músicos: o Windmill, uma sala de espetáculos independente, em Brixton, no Sul de Londres, onde a maior parte destas bandas foi fundada ou está sediada, e que ofereceu a praticamente todos os grupos mencionados a oportunidade de subirem ao palco e mostrarem a sua música.

“Não sei até que ponto é que as pessoas envolvidas neste “novo movimento” pensam nele dessa forma”, esclarece Wayne. “Mas sem dúvida que existe uma cena musical forte e excitante em Inglaterra. No entanto, acredito que as semelhanças e a união se devem mais à força de salas de concerto independentes do que ao cenário político pós-Brexit”, diz o músico, louvando ainda o Windmill como um espaço que acolheu e apostou na sua banda e dos seus conterrâneos.

“O impacto que o Windmill teve na nossa banda é incalculável. É um sítio muito importante. Eles acolheram-nos e a tantas outras bandas que vieram antes de nós, como os Fat White Family, Goat Girl ou os Shame e, quando a pandemia acabar, irá continuar a acolher bandas novas”, afirma o músico. “É um grande melting pot para jovens músicos”. 

“Sem o Windmill, não estávamos onde estamos hoje”, confessa Charlie Steen. “Foi o local onde afiámos os nossos dentes, experimentámos imensas coisas em palco e descobrimos quem somos enquanto banda e como queríamos soar.

É um espaço muito importante para a comunidade local e para todas as bandas que passam por lá, que sentem que é um estabelecimento especial”, diz-nos.

O homem responsável pelo agenciamento de concertos neste estabelecimento é Tim Perry. Mas o próprio gosta de atribuir a maior parte da responsabilidade à atitude das bandas.

“Os grupos têm uma atitude muito ativa ao promover os espetáculos e isso ajudou-os a criar uma atitude e pensamento muito DIY [do it yourself – “faça você mesmo”]”, explica. “Por isso, se as bandas se safarem bem, isso acontece devido ao seu trabalho, o que lhes vale o respeito e apoio dos seus pares”.

Em relação ao som que procura para o Windmill, Perry afirma que não está à procura de algo muito específico, preferindo apostar no “ecletismo e mistura de estilos”. O mais importante no processo de seleção, sublinha, é a atitude do grupo. “O mais importante em fazer um concerto é o trabalho de equipa, trabalhar com a sala de espetáculos e respeitar as bandas da casa. Se reparar uma certa arrogância ou se estão a ser muito agressivos em relação às outras bandas digo-lhes que podem ir tocar a outros sítios”.

Além dos músicos, também os fãs têm uma atitude diferente. E nota que, atualmente, existe uma maior preocupação em relação à qualidade da música. 
“A ‘colheita’ atual está mais preocupada em fazer música excelente em vez de fingirem que são algum tipo de estrelas rock dos anos 1980”, graceja o promotor. “Essa época já foi há muitos anos, mas há quem ainda se agarre a esse ideal”. 

Nas últimas semanas, dado o avanço inglês no processo de vacinação, Perry tem estado muito ocupado a agendar concertos e a trazer o “Post-Brexit Punk” de volta à ação.

É uma altura excitante para escutar o melhor que o Reino Unido e a Irlanda têm para oferecer. Mas a quem devemos estar atentos nos próximos tempos?

Charlie Steen deixa elogios a Junior Brother, cantautor irlandês, enquanto a sugestão pessoal de Charlie Wayne recai em dois grupos britânicos, os Famous e os Platonica Erotica, que este ano lançaram EP’s. “Vale mesmo a pena descobrir e ouvir a sua música incrível”, aconselha o baterista.

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